Leio quadrinhos desde que me entendo por gente, mas uma coisa é inegável: nos últimos anos tenho a legítima sensação de que se escreve sobre absolutamente tudo no universo da nona arte. Música clássica, jazz, robótica, revoluções, relações entre pais e filhos, guerra do vietnã, a lei seca, apocalipse zumbi, a questão da palestina, bulimia, homossexualidade, etc etc, haja etc. Pena que os leitores muitas vezes prefiram se acomodar ao segmento dos super-heróis (que de lá pra cá - a meu ver - sobrevive mais de fama do que de mérito).
Essa semana terminei de ler a graphic novel Miss Davis: a vida e as lutas de Angela Davis, de Sybille Titeux de la Croix & Amazing Ameziane, e tive uma certeza. A de que na época em que estudei sobre esse período histórico e emblemático nos EUA não tive um professor(a) tão engajado quanto essas duas artistas. Elas dão um show à parte!
Dividido em quatro tomos o álbum - magnificamente ilustrado - traz a história de vida e as sagas pelas quais passou aquela que é considerada por muitos estudiosos uma das mulheres mais perseguidas da história do continente americano. Seu único crime: lutar pela liberdade (sua e de seu povo) no país que praticamente inventou a segregação racial.
Da abertura, com o ataque à sede dos Panteras Negras, até o julgamento manipulado que teve de enfrentar para ver a luz do sol novamente, acompanhamos uma trajetória de dor, humilhação e muito sofrimento.
A infância difícil, a segregação nas escolas, o desaparecimento do pai, a pobreza extrema dentro de casa; o governo pseudomoralista de Ronald Reagan, sua filiação aos Panteras, a visita à Cuba, a demissão da UCLA, onde lecionava; a prisão, torturas psicológicas, o isolamento do mundo real, a morte de George Jackson, um parceiro de luta e grande amor; o processo, as inúmeras tentativas da promotoria de condená-la sem provas sólidas... Angela é o melhor exemplo de sobrevivente que eu já vi em toda a minha vida.
Digo com folga: Miss Davis deveria ser material de leitura em todas as escolas por aqui. Talvez servisse para abrir os olhos de alguns brasileiros que adoram ver a terra do tio Sam como um lugar mágico, sem defeitos ou pecados capitais.
Dois pontos importantes se destacam no trabalho: 1) há também na narrativa de Sybille e Amazing o ponto de vista da jornalista June Seymour, que acompanhou toda a saga de Angela, e de quem se tornou amiga, e a jornada de ambas se complementa de forma muito interessante; e 2) A HQ mescla a todo momento tipos diferentes de desenho (dos mais simples aos mais sofisticados), dando ao trabalho final uma complexidade única. Em outras palavras: é quase como se acompanhássemos um trabalho jornalístico, investigativo, conduzido por um profissional da área.
Cheguei a fazer um paralelo entre este álbum e a carreira do quadrinista Joe Sacco, um mestre nesse segmento que funde quadrinhos e imprensa.
Ao fim o que temos é uma espécie de manifesto político sobre a pátria que se vende para o resto do mundo como terra das oportunidades, dos bravos, e no entanto se esconde atrás de um eterno teatro de hipocrisias sociais. Ah! e um adendo importante que eu não posso esquecer de mencionar: a obra faz parte da chamada soul trilogy, junto com Muhammad Ali (de Sybille Titeux de La Croix e Amazing Ameziane) e Big Black: stand at Attica (de Frank "big black" Smith, Jared Reinmuth e Ameziane).
Gostou? Agora vai atrás do seu exemplar e procura as suas próprias respostas, vai! Tenho certeza de que vocês não vão conseguir parar, depois de ler a primeira página...
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