domingo, 8 de março de 2020

Il maestro


O cinema mundial é capaz de nos presentear com homens e mulheres extraordinários a tal nível que até mesmo uma simples categorização ou definição torna-se impossível. É simplesmente inimaginável dizer o que certas pessoas significam em termos de sétima arte. E cá entre nós: que bom que isso de vez em quando acontece com nós, cinéfilos! 

Este ano comemoramos o centenário de Federico Fellini. Para muitos, o gênio-mor, praticamente o "inventor" do cinema italiano. Para este que vos fala, il maestro do cinema mundial. 

É difícil explicar Fellini, pois ele mesmo não gostava que o definissem ou classificassem. Seu cinema era muito mais que meras narrativas. Não ficou conhecido como o "rei dos sonhos" à toa. E em várias entrevistas que concedeu ao longo da vida, deixou claro que um gesto, um grito, um pôr-do-sol, um sorriso, a escuridão, valiam tanto quanto qualquer personagem que criou. E criou vários. 

Entre os colaboradores que teve ao longo da carreira, difícil esquecer de dois: sua musa - e posteriormente esposa - Giuletta Massina, que ele chamou de "o Carlitos de saias" (e para os que acham um exagero a comparação com Chaplin, recomendo que parem tudo o que estão fazendo nesse momento e assistam Noites de Cabíria) e o galã malandro, como meu pai gostava de chamar, Marcello Mastroianni. E é praticamente impossível, quando se fala em Marcello, não lembrar de seu Guido Anselmi em Oito e meio, o diretor de cinema em crise existencial. E embora ele tenha se consagrado na parceria que realizou com a musa Sophia Loren ao longo da carreira, foi pelas mãos de Fellini que atingiu seu patamar mais alto. E acreditem: isso não é pouca coisa, não! 

Porém, nem só de parcerias bem sucedidas sobrevive um grande diretor de cinema. Há um marca inconfundível na sétima arte de Fellini: a capacidade de transformar os menores temas em assuntos grandiosos, extremamente bem contados. Foi assim com um simples ensaio de orquestra (por sinal, um longa que até hoje mexe com a minha cabeça), o dia-a-dia de um transatlântico no magnífico E la nave va e o ritual por trás dos palhaços de circo (realizando um dos melhores documentários que eu já vi até hoje). 

Numa passagem do programa Arquivo N da Globo News sobre seu centenário o diretor diz que fora do set "se sente amargurado, vazio" e me pego pensando no quanto deve ter ficado eufórico durante as filmagens de A estrada da vida (que lhe valeu um Oscar de filme estrangeiro), A doce vida e Amarcord, para mim seus melhores trabalhos. 

Fellini não gostava de simplesmente retratar a burguesia em seus vícios e virtudes, mas soube escandalizar com A doce vida. Não era um Pasolini, provocador em excesso, morto por um fã ainda mais fanático do que ele, mas soube pesar a mão quando precisou com o polêmico Satyricon. E quando precisou homenagear (tem quem diga satirizar) a dupla de dançarinos mais famosa de hollywood, o fez com grande brilhantismo em Ginger e Fred.   

Esse ano completaremos em outubro 27 anos sem a presença desse grande mestre e ele nunca fez tanta falta para a sétima arte quanto agora. A cine città, fábrica onde realizou seus sonhos mais loucos, também nos deixou. O cinema italiano também não é mais o mesmo dos tempos em que ele, Ettore Scola, Vittorio de Sica, Michelangelo Antonioni, Sergio Leone e Roberto Rossellini ditavam os rumos da arte no país. 

Tem quem me pergunte volta e meia se ele sobreviveria hoje em dia, em plena era de blockbusters, remakes, Disney dominando o mercado e uma crise de originalidade assustadora. Resposta: não tenho a menor dúvida. Não consigo imaginar a presença de diretores como Guillermo del Toro, Alfonso Cuarón e Terry Gilliam no mercado audiovisual se no passado não houvesse um Federico Fellini. Ele foi um visionário da indústria, dessa nobre arte de contar histórias. Transformou o delírio em forma de pensamento. Fez do mundano um assunto para o debate. Não vingaria hoje? Sério? Vocês não podem realmente acreditar nisso!

Consta no IMDb um projeto chamado The thousand miles, inspirado num roteiro seu, a ser dirigido por Sylvain Chomet (realizador da extraordinária animação As bicicletas de Belleville), uma espécie de ficção-científica. E já fiquei de cabelo em pé só de saber da existência dele. Espero ansioso que saia do papel. Caso não saia, só nos resta, fãs inconsoláveis de seu talento ímpar, continuar acompanhando suas aventuras e delírios através dos dvds e do blu-ray. O que, logicamente, não é a mesma coisa. Mas que quebra um galho, ah quebra! 

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