Às vezes eu gostaria, confesso, de ter a ingenuidade daqueles que acreditam piamente que competições como a Copa do Mundo e as Olimpíadas são capazes de melhorar os países que as sediaram. Infelizmente, a realidade (sempre triste, no final das contas) é bem outra. O que vemos é um país normalmente inventado para atender as necessidades de um grupo de capitalistas que não dão a mínima para nação nenhuma. Só querem mesmo saber é de show business e acumular contas bancárias fantasmas em paraísos fiscais.
Termino hoje de assistir o interessante Os miseráveis, do diretor Ladj Ly - indicado ao Oscar de filme internacional esse ano - e, ao final dos créditos, penso sozinho sentado no sofá da sala: "É... o mundo sempre consegue piorar, por mais que tentemos consertá-lo ou curá-lo das adversidades".
O filme - que não tem uma relação direta com o romance seminal homônimo do escritor Victor Hugo - é uma grande crônica sobre a estereotipia racial que habita a França nesse século XXI. E achei inteligente da parte do diretor abrir sua película com o dia da final da copa do mundo da Rússia, em 2018, quando a seleção dos azuis (os Le Bleu) venceram a Croácia na final. Digo isso, porque se trata da França que o governo e os tabloides querem que você conheça: a França vencedora, irretocável, sem defeitos, o melhor país do mundo para se viver.
Mas como disse lá no meio do primeiro parágrafo: a realidade (triste) é bem outra. E logo nos deparamos com um caldeirão cultural e ideológico dos mais fortes. Tenho a sensação, a cada fotograma mostrado, de estar diante de indivíduos sentados em cima de galões de gasolina, aptos a explodir a qualquer momento. E acreditem: eles explodirão à menor fissura.
A matéria prima humana vista aqui em nada difere daquela que os cinéfilos já conhecem de cor e salteado quando o assunto em pauta são os imigrantes (e muitas vezes eles se apresentam afrontosamente como mais cidadãos e éticos do que aqueles nascidos no país). Já vi muito dessa postura ofensiva em longas como Kids, de Larry Clark e Paranoid Park, de Gus Van Sant (e eu sei o que vocês vão dizer: "mas nesses filmes eles não eram imigrantes? Mas o contexto, no final das contas, é o mesmo!). Porém, há um adendo aqui: o sentimento legítimo de que essas pessoas não aguentam mais ser escravas de um regime capitalista e uma sistema de ideias que não as enxerga como parte da solução, mas do problema.
Os jovens Issa (Issa Perica), que rouba um filhote de leão do circo, causando uma quizila entre ciganos e senegaleses, e Buzz (Al-Hassan Ly), que com seu drone intrusivo invade privacidades alheias; o truculento Le Maire (Steve Tientcheu), espécie de manda-chuva da região, aquele que decide quem faz o que, quando, onde e como; o trio de policiais que faz a ronda na área, mas está mais interessado mesmo é em explorar a boa fé alheia, pois se escondem atrás do distintivo da corporação e suas leis distorcidas; o religioso, mas misterioso Salah (Almamy Kanouté), que se esconde em seu restaurante e em sua fé contraditória, mas sabe bem tudo o que se passa na área e é sempre procurado para opinar sobre certas questões espinhosas, entre outras figuras, têm algo em comum: são ervas daninhas.
Não. É isso mesmo que vocês leram: tratam-se de ervas daninhas, pois estão ali - na visão dos verdadeiros e conservadores franceses - para estragar toda a pureza e a dignidade que o país conquistou a duras penas da Revolução Francesa para cá. Eles são, para os nascidos na terra, os ingratos, os que deveriam voltar para sua terra natal e "deixar os cidadãos de bem em paz". (Sim, pois não é somente nos EUA que essa xenofobia acontece, não!).
Quando o final se aproxima, as rivalidades não conseguem ser arrefecidas e o nível de tensão aumenta, num crescendo assustador (pois, cá entre nós, é meramente impossível que um barril de pólvora desses não acabe em revolução ou guerra civil, para dizer o mínimo) o que nossos olhos vislumbram é algo que nossa sociedade já conhece e não aguenta mais rever: o desespero, a fúria, o direito a não permanecer mais calado diante de tanta injustiça. O que eles, os jovens, a nova geração, querem é respeito. E lutar pelo que acreditam. Quando isso não é possível, pois o Estado quer vê-los sempre como subservientes, bum! o caos se instaura.
Vi em alguns sites comentários que diziam que o diretor havia se inspirado em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para realizar tal desfecho. E a referência se faz presente, não pela exatidão, mas pela intenção de promover uma reflexão forte.
Moral da história (se é possível uma moral nesse caso obscuro): o século XXI vê a promessa do capitalismo como solução para todos os problemas se dissolver de forma amarga e o que sobrou é um sentimento dúbio de impotência e hipocrisia. As nações do G8 - grupo do qual a França faz parte - querem se vender para o mundo através de suas conquistas e realizações, mas na prática o que vemos é preconceito e um abismo econômico e cultural atroz. Procurem saber sobre os refugiados que vagam pelo mundo e me corrijam se eu estiver errado.
E só me resta gritar: pobres de nós, habitantes desse mundo controverso!
P.S (eu vou me arrepender de ter escrito essa crítica se não falar isso): alguns jornais e tabloides disseram que o filme A vida invisível, de Karim Ainouz, perdeu a vaga no Oscar de melhor filme internacional na reta final para este filme por conta de uma distribuição melhor do longa francês. Caso isso seja verdade, espero que nossa sétima arte - quando todo esse clima ruim atual passar - aprenda a se vender melhor no exterior, pois a película de Karim é infinitamente superior a esta aqui em narrativa. Ou seja: continuamos sendo os vira-latas para a indústria cinematográfica americana, o que é uma pena.
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