domingo, 4 de abril de 2021

Réquiem apaixonado


Como começamos a falar sobre um gênio, alguém que consideramos um gênio desde a primeira vez em que o vemos, acompanhamos tudo o que faz, e ainda assim não percebemos que ele é lembrado como realmente merecia? Resposta (minha e unicamente minha): deixamos sua história de vida registrada de forma a não persistirem dúvidas sobre ela. 

E foi exatamente isso que a mulher que o acompanhou até o último dia da sua vida fez. 

Em 2015, quando o cineasta argentino Hector Babenco realizou seu último longa, Meu amigo Hindu, inspirado na sua própria experiência de vida e na aproximação da morte (Hector lutava contra um linfoma já há algum tempo), ele colocou no roteiro uma conversa entre ele próprio - interpretado pelo ator Willem Dafoe - e a dita cuja. Mais do que isso: tentava convencê-la a deixá-lo vivo mais um tempo, para que pudesse realizar mais um filme. E em determinado momento a morte lhe perguntava se ele pretendia falar mal dela em seu filme. 

No ano seguinte Hector falece, aos 70 anos, e nos deixa um legado único dentro da cinematografia brasileira. Contudo, o mais importante, é que sua última companheira, a atriz Bárbara Paz realizou anos depois um documentário sobre o cineasta, sua vida, sua paixão (no caso, a sétima arte) e, principalmente, transformou justo a morte num personagem humano, singelo, repleto de ternura e extremamente necessário para entendermos este grande homem. 

Com Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, a jovem Bárbara - que se mostrou uma grata surpresa, indo de mera participante do antigo programa Casa dos Artistas à interessante realizadora em seu primeiro longa - nos apresenta um réquiem repleto de sentimento e paixão. E antes que me perguntem do que se trata um réquiem, pego de empréstimo algumas definições que vejo na internet, como por exemplo: 1. Prece ou louvor feito pela igreja aos mortos, 2. Composição ou música que tem o texto litúrgico da missa dos mortos como tema. 

E é preciso abrir o jogo logo de cara: dizer que Babenco não é co-diretor neste extraordinário documentário é, no mínimo, desonroso com o mestre. Ele está a todo momento guiando essa jovem e promissora cineasta, apontando caminhos, ângulos de câmera, escolhas possíveis de narrativa, fazendo confissões, expondo erros que cometeu no passado por ser muito vaidoso ou intolerante. 

Como pano de fundo de luxo seu legado (como comentei acima). Vemos sua filmografia brilhante passar diante de nossos olhos e me encanto de novo por me reencontrar com clássicos como Pixote - a lei do mais fraco, O beijo da mulher aranhaLúcio Flávio - passageiro da agonia, Ironweed, Carandiru e tantos outros. Sinto vontade de revê-los na mesma hora. Quem sabe o faça nos próximos dias e queira resenhá-los também. Se há um diretor na história do cinema nacional cuja carreira eu não tenha reprimendas é Hector. Coloco-o junto à artistas como Pedro Almodóvar, Werner Herzog, Federico Fellini e Charles Chaplin, formando um grupo de gênios dos quais sempre sou suspeito para falar, pois adoro tudo o que fazem.  

Há uma passagem no documentário em que Babenco alega não ter realizado ainda sua grande obra. Cá entre nós... Tenho minhas dúvidas. Um homem que viajou doente para a Amazônia, só para rodar um filme complicadíssimo (e ainda operou entre um estágio e outro da produção); expôs sua própria condição como presidiário e teve a honra de ver Jack Nicholson e Meryl Streep como seu casal de protagonistas e ainda assim não realizou seu apogeu? Duvido! Só pode mesmo ser falsa modéstia. 

Entretanto, ele também era um homem ácido, cheio de ironias e questionamentos, que se recusava a morrer antes de deixar claro para o mundo que havia realizado sua missão na terra. Vivia dizendo que quando morresse desejava ir para Hong Kong de alguma forma (fosse como espírito ou num caixão). E definitivamente era um apaixonado pelas mulheres. Que o diga uma das últimas cenas do filme, numa sala repleta de amigos de carreira e da vida!

É dessa mistura de amores e fúria, paixão e deboche, que nos inebriamos com um projeto documental bárbaro e de uma verdade avassaladora do primeiro ao último fotograma. E o mais importante: do jeito exato que o próprio Babenco tanto gostava.

Ao final da sessão - que foi exibida na última semana na programação da Globo News -, enquanto os créditos passam, eu fico sentado no sofá refletindo sobre o que vi. E chego à conclusão de que mais uma vez, como vem acontecendo com muita frequência neste país nos últimos anos, perdemos um grande homem e um fantástico artista. Que pena! O país precisa de mais diretores como Babenco e mais filmes como esse.

P.S: o fato de Babenco - alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou ter vencido o Festival de Veneza como melhor documentário e ter sido o representante brasileiro na disputa do Oscar de melhor filme internacional deste ano é apenas um pequeno detalhe que abrilhanta ainda mais a importância deste grande filme. Não tentem enxergá-lo além disso!    


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