O teatro, muito mais do que simplesmente interpretações extraordinárias e toda a equipe (figurinistas, cenógrafos, contrarregras, etc) que rodeia o espetáculo, é um organismo vivo. Mais do que isso: é praticamente uma segunda família na vida de quem vive dentro desse meio. Sou da opinião que ou você vive intensamente dentro desse universo ou é meramente um reles espectador ou crítico teatral. E não existe um meio termo para explicar de fato o que significa pertencer a este mundo complexo, mas não menos encantador.
Logo, imagine a tristeza de quem adora o mundo teatral e as salas de espetáculo não poder, em pleno ano de centenário da dramaturga, escritora e professora Maria Clara Machado, nossa maior expoente nesse meio que comemoraria no último dia 3, se viva, a glamourosa data, assistir a uma peça sequer por conta da pandemia do novo Covid que continua fazendo vítimas por onde passa e é responsável direto pelo fechamento dos teatros (que viram nas sessões online uma válvula de escape para sobreviver).
Parece ironia, mas não é. Amargo 2021! Se tudo se encontrasse na maior normalidade estaríamos certamente apreciando, junto com as crianças, aquilo que Maria Clara sabia fazer de melhor: encantar plateias ao redor do país.
Fundadora do Tablado - escola e também companhia teatral das mais prestigiadas do país, que lançou muitos de nossos melhores artistas -, Maria Clara fez o meio teatral entender que não precisávamos tratar o público infantil de maneira diferenciada ou tatibitate. Via nos pequenos espectadores "seres extraordinários", sementes do que poderia ser o nosso melhor legado cultural. Dizia mais: "vejo nos frutos do tablado a salvação para o caos desse país". E levando-se em consideração o atual momento que o Brasil vive, de desmantelamento cultural do Oiapoque ao Chuí, é fácil perceber o quanto esta mulher inteligente e corajosa era também visionária.
Sua obra é a essência do teatro amador, sem os recursos e o luxo dos grandes palcos. Contudo, isso não faz de sua arte um trabalho pobre ou menor. Pelo contrário. O método machadiano se tornou consagrado por aqueles que por ele trilharam seu caminho. E a lista é imensa; Certamente não teríamos grande parte do elenco de muitas emissoras de tv ou astros do cinema nacional não fosse a então "escolinha" de Maria Clara. E quem aprendeu a engatinhar lá dentro é eterno devedor.
Vejo uma entrevista no site da EBC com o ator Marcelo Serrado, cria da casa, dizendo que ali fez de tudo: montou cenários, atuou, escreveu, produziu, dirigiu, deu aula e muito mais. Não se tratava de uma mera instituição de ensino tradicional e sim um lugar de convívio e coleguismo, onde todos aprendem e dividem com todos.
Outra formada pelo Tablado, a atriz Fernanda Torres, chama Maria Clara de "a mãe do teatro carioca" e está certíssima. Não, meus caros leitores! Não é exagero, não. Não fosse seus fantasmas, dragões, bruxas e outras figuras sobrenaturais e os adultos de hoje (filhos do projeto de Maria Clara) não teriam a capacidade de sonhar, se encantar e, principalmente, se surpreender com o novo. Algo, aliás, que anda faltando e muito à sociedade brasileira contemporânea.
A menina que veio de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro tentar a vida escreveu mais de 30 peças, traduzidas para o mundo inteiro e imortalizadas pelo público. Entre seus maiores sucessos cabe um parêntesis mais do que elogioso para espetáculos como Pluft - o fantasminha, A menina e o vento, O cavalinho azul, Maria Minhoca e A bruxinha que era boa. E o mais importante: defendeu em cada um de seus textos a máxima de que “A vida é uma só. E no teatro podemos ter várias vidas”.
Em suma: via no palco um espaço libertador e transformador para qualquer ser humano que quisesse fugir da mesmice ou da zona de conforto cotidiana.
Mesmo com a pandemia tolhendo grande parte da produção cultural, novidades sobre a obra de Maria Clara estão por vir. Dentre elas, um documentário - O tablado e Maria Clara Machado, da cineasta Creuza Gravina, que espera somente a fase negra passar para estrear nas salas de projeção - e uma nova versão live action (agora em 3D) da peça infantil Pluft, o fantasminha, sob a direção de Rosane Svartman. Portanto, esperemos ansiosos!
E que no seu aniversário de 200 anos ela receba com todo o mérito e garbo as honrarias que não pode ter desta vez...
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