domingo, 18 de abril de 2021

Os novos peregrinos


Eu tinha por volta dos meus 20 anos de idade quando procurei numa biblioteca de bairro informações a respeito do regime de hipotecas que rege o mercado imobiliário norte-americano. Eu queria entender o que um cidadão da terra do Tio Sam precisava fazer para ser dono de sua própria residência. E a resposta que chegou até mim foi: fiquei extremamente horrorizado. A sensação que me povoou durante os meses seguintes foi a de que estava diante de uma sociedade manipulada, que gosta de ser feita de escrava. 

E como bom cinéfilo que sou, durante anos pensei: "Hollywood jamais exporá esta triste realidade num longa-metragem. É barra pesada demais e pior do que isso: eles não gostam de mostrar suas derrotas e distorções com muita facilidade".

Mas não é que uma cineasta chinesa decidiu falar do legado produzido por essa cultura sórdida e além disso se tornou favorita ao prêmio de melhor direção no Oscar desse ano? Sim, podem acreditar. A polêmica temática sobre moradia nos EUA chegou às telas do cinema feita de forma seca, crua, mas não menos visceral. E em tempos de crise financeira global e "a maior nação do mundo" mostrando que, na verdade, nunca foi tudo isso que vendeu para o resto do planeta, vale a pena dar uma fuçada nesse lamaçal. 

Refiro-me à Nomadland, filme da diretora Chloé Zhao, e a verdade sobre "A América será grande novamente", promovida pelo governo antecessor.

Acompanhamos a saga de Fern (Frances McDormand), uma mulher que simplesmente cansou da ideia de passar a vida inteira trabalhando por uma casa que no final das contas nunca será dela, pois a hipoteca foi criada com a clara intenção de mantê-la trabalhando até morrer, sob a desculpa de que no final ela realizaria o sonho da casa própria. Pura ilusão! E ela então decide morar em seu trailer, viajando de cidade em cidade em busca de pequenos trabalhos temporários e bicos. 

Sua melhor fonte de renda é um trabalho na Amazon que não dura o ano inteiro e por isso ela precisa preencher a lacuna com outros serviços. Do contrário, não conseguirá manter suas despesas pagas. E são muitas. Qualquer defeito no veículo, doença por menor que seja ou deslize ocorrido acarretará num ônus e isso pode afetar sua renda básica. Logo, ela vive uma vida cigana, sempre na berlinda. 

E durante sua travessia conhece muitos como ela, divide suas experiências e lamentações. Eles são os novos peregrinos dessa nação que, outrora, teve que viajar muito, bater muita perna, antes de fincar território num lugar que pudesse chamar de seu. E essa é exatamente a melhor história do filme. É quando conhecemos os Estados Unidos da América que os tabloides, a Casa Branca e a indústria cultural não querem que você, espectador, conheça. Já que esse país não venderia ao restante do mundo a pecha de grandioso, de maior potência mundial, que eles volta e meia apregoam em seus discursos e eventos majestosos.  

Houve um momento da película em que me peguei relacionando Fern e todas aquelas pessoas que vivem na estrada com o jovem Chris McCandless, personagem de Emile Hirsch no filme Na natureza selvagem, de Sean Penn. A única diferença é que Chris decidiu abandonar sua casa e família porque não conseguia viver sob a ótica do sistema (ou seja: entendia sua vida dentro de uma ótica marginal). Já Fern desistiu do sistema por considerá-lo falho e injusto. 

E ela vê no discurso daqueles que não aceitam seu estilo de vida ou tentam vender para a sociedade a ideia de que o país fez a melhor escolha para todos uma espécie de manipulação muito bem construída pelos governantes. Tive, inclusive, a impressão numa determinada cena de que ela olhava para seu interlocutor como se ele fosse um indivíduo que acabasse de passar por uma lobotomia, tamanha a disparidade entre suas opiniões.

Ao final da projeção o que fica de mais evidente é a sensação de niilismo e cansaço daqueles que lutam contra a maré para sobreviver um dia de cada vez, pois foi apenas isto que lhes sobrou do chamado sonho americano há tantas décadas acalentado. 

Nomadland pode até não ganhar o Oscar de melhor filme e ser vencido, como tantos outros no passado, pelo eterno moralismo da academia. Filmes corajosos como O segredo de Brokeback Mountain e O resgate do soldado Ryan já viveram essa sina, perdendo para longas de gosto discutível e que perderam relevância meses depois da premiação. Contudo, dentre todos os candidatos desse ano e por tudo o que vem acontecendo no país nos últimos quatro anos, seria o postulante ideal ao prêmio. E alguns talvez me perguntem nesse momento o porquê. 

Respondo: porque às vezes, por mais dura que seja a verdade, e por mais que não queiramos enxergá-la, seja por vergonha ou covardia, ela precisa ser mostrada e reconhecida. E isso é mais justo do que vivermos eternamente na mentira.     


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