domingo, 25 de abril de 2021

É o que acontece quando passamos do limite


Definitivamente a humanidade é um estudo de caso sórdido. Por mais que eu reflita sobre ela, chego à conclusão de que não passamos de um grupo gigantesco de pessoas voltados à um moral fetichista, impregnada de vaidade excessiva e que só pensa em usar o próximo a seu bel prazer (e que se danem as consequências disso!). 

Olhemos ao redor por um mero instante e certamente nos depararemos com versões as mais diversas desse terrível animal que é o ser humano. Lógico que não são todos, mas também não são poucos. E nos últimos anos a demanda por este tipo de criatura contraditória e vil cresceu e muito e a mentalidade política e social é bastante responsável por isso. Não sei bem onde iremos parar nos próximos anos, mas certamente o cenário que vem se construindo não é nada bonito. 

E assim como existem aqueles que "deixam pra lá", que "não tem nada a ver com isso", que "só se importam com suas próprias vidas", há também um outro tipo mais ácido: aquele que decide revidar, que não vai deixar barato ou morrer no esquecimento. E Cassandra (Carrey Mulligan), protagonista de Bela vingança, longa de estreia da diretora Emerald Fennell, é dessas. 

Ficou marcada de forma perturbadora por uma tragédia ocorrida com uma amiga quando cursava Medicina na faculdade e não viu os algozes desse crime serem punidos. Na verdade, os viu prosperar, obterem sucesso, construírem família, tudo com o consentimento da leniência que é dada ao universo masculino toda vez que comete erros por um cultura eminentemente misógina. E ela percebe então que se não tomar uma atitude ela própria nada mudará. Nunca. E com isso trama sua vingança com requintes de sordidez proporcional à que sofreu. 

Há um aspecto na vida de Cassandra que me fez lembrar do conflito existencial que era a vida de Brandon, o viciado em sexo vivido por Michael Fassbender em Shame, de Steve McQueen. Enquanto ele não consegue se libertar de sua vida lasciva, mesmo quando encontra uma mulher disposta a dividir sua vida com ele, Cassandra simplesmente não consegue abandonar a ideia de vingança e seguir em frente com sua existência. Seus pais percebem isso, a mãe de sua amiga percebe isso, mas ela simplesmente não consegue desviar da rota que planejou. 

E isso sempre - ou quase sempre - costuma cobrar um preço amargo no final. 

Entretanto, ela também possui mais motivos para desconfiar da aproximação dos demais (principalmente de um antigo colega daquela época). Afinal de contas, quando estudante, testemunhou de perto a covardia que era dirigida às mulheres, que ainda por cima muitas vezes, tiveram que dissimular ou desconversar sobre o assunto, caso contrário teriam suas carreiras ou vidas destruídas. E isso, evidentemente, é um tapa na cara de quem não pode ser diferente da maioria que faz e acontece com a aprovação de um sistema corrupto e hipócrita. 

Gosto particularmente da trilha sonora do filme, que poderia apelar gratuitamente à Beyoncés e Katy Perrys, mas prefere tomar um outro caminho. Ela meio que me fez pensar não somente na perda da inocência como também numa nova abordagem sobre temáticas como canções de ninar, contos de fadas e todo o universo infantil. (Detalhe: prestem atenção numa versão modernizada de um música de sucesso da cantora Britney Spears. Achei o arranjo não somente interessantíssimo e inovador como ele também antevê todo o macabro desfecho da trama).  

Passada tanta dor e tanto desrespeito, o legado que o filme de Emerald me trouxe foi: não caiam na tentação de transformar o longa num libelo a favor do empoderamento feminino. Ele é muito mais do que isso. Bela vingança fala, no final das contas, do que acontece quando nós, seres humanos, passamos do limite e deixamos de respeitar o outro. E quando esses seres humanos pertencem a uma classe privilegiada, então, é um caos generalizado. 

Vai ter muito homem conservador ou velha guarda chamando essa produção de revanchista ou "cheia de mágoa" e desde já adianto: eles provavelmente não entenderam nada do que viram e ainda por cima defendem o outro lado, por uma questão de identificação pessoal. Mas isso é problema deles, não do filme, que é direto em suas intenções (às vezes até demais).

P.S (ou um palpite): pelo que eu tenho visto na temporada de prêmios desse ano a atriz Carrey Mulligan é uma forte candidata ao Oscar de melhor atriz. Eu certamente votaria nela se fosse membro da Academia.  


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