sábado, 9 de março de 2019

América debilitada


O problema dos impérios (e daqueles que os idolatram) é um só: a falsa crença de que são imbatíveis, infalíveis, acima de qualquer suspeita. A eles nada acontece, pois ditam os rumos da vida moderna. Lêdo engano, meus caros! O império romano que o diga. Durou cinco séculos e mesmo assim não se encontra mais entre nós. E diga-se de passagem: já foi tarde. 

Nosso império atual, o tão superestimado (opinião minha) Estados Unidos, também rezou nessa cartilha durante anos. E fez de tudo - desde usar a chegada do homem à lua até o mal explicado 11 de setembro - para manter-se no auge dessa nossa "pós-modernidade" (as aspas são intencionais). Deu no que deu. 

A terra de Tio Sam - hoje de Donald Trump - vive seus piores momentos há algum tempo e não consegue entender que o mundo, maior do que uma única nação, precisa evoluir, crescer, andar com as próprias pernas. Resultado: uma crise de valores, social e econômica, sem precedentes. Contudo, ainda há homens de fibra capazes de expor as mazelas dessa nação contraditória. Mais: expor o problema desde suas raízes. Um deles, com certeza, é o cineasta Spike Lee. E faz isso em sua cinematografia desde que me entendo por gente (vejam Faça a coisa certa, Clockers e Malcolm X e tirem suas próprias conclusões!). 

Pois bem: com Infiltrado na Klan, Spike faz seu maior ato político em forma de cinema das últimas duas décadas e isso fez muito bem a ele. O diretor precisa colocar para fora seu discurso raivoso e não menos verídico para explicar as raízes do que vem acontecendo com a América nos últimos anos. Vocês não acompanham os jornais? Pois deveriam. Funcionários públicos sem receber salário há meses, marchas envolvendo supremacistas brancos, o retorno da Ku Klux Klan ao cenário político e um presidente impopular que faz com que o país não consiga mais dialogar com a Europa como antes. E isso só para começar. 

Spike Lee não conta somente a extraordinária história de Ron Stallworth (John David Washington), policial negro do Colorado que consegue fazer contato com uma das sedes da Ku Klux Klan e infiltrar um agente (mais complicado ainda: um policial judeu) dentro da organização. Como seria simples se fosse apenas isso! Não. O diretor mais polêmico e controverso de hollywood conta, isso sim, a história de anos de preconceito e racismo desta grande nação, que sempre se vendeu às demais como "a terra das oportunidades". 

Na sua colcha de referências múltiplas, citações a obras-primas do cinema como E o vento levou e O nascimento de uma nação, figuras proeminentes e revolucionárias da Blaxploitation e personas e organizações políticas como Angela Davis e os Panteras Negras. Tudo misturado num caldeirão capaz de deixar muitos cidadãos de pele branca incomodados com seu discurso e empáfia (na própria sessão que eu assisti, fui capaz de perceber alguns narizes torcidos em alguns momentos). 

"Mas qual o objetivo de tanta raiva e desabafo?", dirão alguns demagogos de carteirinha (e eles estão, hoje em dia, mais presentes do que nunca). É simples de explicar, mas não de - para alguns, pelo menos - entender: a necessidade de continuar forçando a fechadura e a sensação de que se as comunidades negras pararem de falar, tudo será esquecido no dia seguinte com a maior naturalidade. Portanto, trata-se de um batalha para todo o sempre. 

Somos um mundo racista que se recusa a admitir seu racismo. Chama-o de brincadeira, de piada, de mau entendido etc. Dentro deste mundo racista há um capítulo especial chamado Estados Unidos. Uma pátria que adora se vender como "a maior nação que este mundo já viu" e, no entanto, não consegue reconhecer nem mesmo seus próprios semelhantes, simplesmente pelo fato de pertencerem a uma outra etnia. Mais: acusam os negros de não serem os reais fundadores dessa pátria. Triste, mas real. Logo, não há outro jeito senão encarar a guerra de frente e fazer seus descendentes entenderem que eles terão de continuar o processo depois que os pais falecerem e assim por diante. Não há espaço para tréguas ou acordos. Não aqui. Não hoje, nem amanhã, nem no dia seguinte. 

Spike Lee encerra seu "filme" (eu sei... é difícil ver o longa apenas como uma obra de entretenimento) com imagens duras, mas poderosas. Dá voz às vítimas recentes de manifestações ocorridas nos EUA, expõe com frieza a covardia dos que se dizem "raça superior". E, no final das contas, exibe uma América debilitada, fruto de anos e anos de exibicionismo e intolerância. 

Como último frame, libelo derradeiro deste momento ímpar e árduo que o país atravessa, uma bandeira nacional de ponta a cabeça (que na linguagem codificada pode significar tanto um pedido de socorro como um sinal de terrível sofrimento em situações de perigo). Em  outras palavras: a América pede ajuda. O problema: como ajudar a quem sempre ajudou apenas por interesse?

P.S: Spike Lee e seu filme foram indicados ao Oscar desse ano. E depois do que eu vi na tela naqueles 135 claustrofóbicos minutos, digo sem reservas: foi a maior ousadia do prêmio esse ano, mesmo não faturando a estatueta de melhor filme!

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