Chega o carnaval e com ele o famigerado desfile das escolas de samba na Marquês de Sapucaí, evento mais do que habitual na cidade maravilhosa. Porém esse ano, particularmente, comemoramos 30 anos de um desfile antológico. Provavelmente o mais famoso de toda a história do Sambódromo até hoje. Refiro-me ao desfile da Beija-Flor de Nilópolis no ano de 1989, Ratos e urubus, largem minha fantasia, vice-campeão do carnaval naquele ano.
Eu tinha 12 anos naquela época e ia à Avenida Presidente Vargas, no centro, com meu primo para ver os carros alegóricos das agremiações, que ficavam estacionados no meio da rua, em frente ao Terreirão do Samba. E naquele ano específico me peguei sem entender nada quando vi o abre-alas da escola coberto com um plástico preto e os dizeres escritos numa faixa: "mesmo proibido, olhai por nós".
Motivo: a Arquidiocese, indignada com o Cristo Mendigo - criação do carnavalesco (e gênio da passarela) Joãosinho Trinta -, pediu na justiça a não exibição da escultura. Daí, o plástico negro cobrindo o carro. Para muitos, aquela imagem terrível, castradora, era a prova viva do fim das esperanças da agremiação a concorrer ao título naquele ano. Mal sabiam eles que estavam redondamente enganados!
Joãosinho Trinta sempre fora criticado por não produzir enredos populares, e vender unicamente o luxo de suas fantasias e carros alegóricos. Em outras palavras: não era visto pelos críticos de carnaval como um carnavalesco do povo de fato. E quando proferiu publicamente a frase "o povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual", isso acirrou ainda mais a rivalidade com esses mesmos críticos.
Chega a hora da verdade, a escola entra na avenida, Neguinho da Beija-flor solta a voz e o resultado é o que muitos chamaram anos depois de "história não-oficial do país" (em comparação com a versão oficial vendida pela vencedora daquele ano, a Imperatriz Leopoldinense, com Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós). Mendigos rodeavam o cristo coberto, exibindo a faceta mais atroz e corajosa de nosso país Peter Pan, que se recusa a crescer e sair da desigualdade. E passada aquela miséria escancarada a escola trouxe seu luxo habitual, intercalando os dois Brasis que não se bicam com extrema genialidade.
Contudo, não foram os passistas, as beldades seminuas ou o samba prafrentex que mais chamou a atenção da mídia e da sociedade naquele ano. Não, meus caros leitores! E, na verdade, o momento máximo desse desfile aconteceu no Sábado das campeãs, quando funcionários da própria escola retiram o plástico que recobria o Cristo, o exibindo para a plateia da Marquês de Sapucaí, ensandecida. Há um vídeo no youtube que mostra o desfile das campeãs na Rede Manchete e a reação apaixonada e delirante de Fernando Pamplona, outrora carnavalesco e naquele ano comentarista de carnaval pela emissora. Seu depoimento apaixonado foi a exata imagem do que os espectadores viram naquele dia. Um arraso!
Há quem critique os jurados pelo vice campeonato da escola naquele ano e quem defenda, no mínimo, o empate com a Imperatriz (eu confesso que, na época, também achei injusto). Entretanto, a Beija-flor conseguiu criar um precedente que se tornou cult com o passar dos anos: o dos desfiles que não ganharam o carnaval, mas entraram para a história por sua inovação e ousadia (já existe até um livro sobre desfiles que quase faturaram o título e mesmo assim marcaram época e não saem da cabeça dos foliões).
Passadas três décadas o sentimento que me fica é o de nostalgia e um pouco de tristeza. Digo tristeza, pois não vejo nos desfiles de hoje a mesma capacidade de surpreender os espectadores. Já vi de tudo no carnaval do Sambódromo: escolas passando debaixo de chuva pesada, carro alegórico pegando fogo inteiro e impedindo a evolução da escola, agremiação desfilando no meio da escuridão, etc etc etc. E vejo Ratos e urubus, largem minha fantasia como um grande pioneiro nesse quesito, o de nos apresentar ao imponderável, àquilo que não é previamente planejado pela direção da escola.
O que vejo hoje é o retrato do excesso de profissionalismo e interesse econômico: um desfile óbvio, sem grandes surpresas, onde muitas vezes já sabemos quem ganhará a taça antes mesmo de começar a apuração. E talvez por isso o meu desinteresse pela programação nos últimos anos. Tenho achado tudo um tanto comercial e sem valor cultural ou histórico.
Não fossem os artigos publicados em sites e jornais de grande circulação sobre este enredo revolucionário, eu teria perdido a chance de dividir com vocês essa memória deliciosa sobre um tema que, infelizmente, não volta mais... E esse ano? Será que rola uma surpresa? Uma que entre pra história? Acho difícil, mas não custa torcer.
Bom carnaval.
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