quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Somos, antes de tudo, narrativas


Assusta-me - e muito! - o desinteresse da sociedade contemporânea por ela mesma. Vivemos como adversários e concorrentes desleais num mundo governado por zumbis tecnológicos, que arrastam seus Iphones de última geração seja para onde forem, tropeçam uns nos outros e sequer têm a ombridade de pedir desculpas. Mais: hoje em dia quem pede desculpas, em muitos casos, é quem leva a trombada. 

Perdemos a capacidade de entender o próximo, seja quem for, o colega de trabalho, o colega de classe na escola ou na faculdade, o vizinho, o porteiro, a empregada, o ascensorista, enfim... Estamos mais interessados em nossos próprios e hipócritas umbigos. E quando nos esforçamos por algo, esse algo tem alguma coisa a ver com status, poder ou fama. E ai de quem pense o contrário, pois será rotulado ou estereotipado de alguma coisa infame ou suja. Sim, é a era dos palavrões e do desrespeito mútuo e gratuito. 

Dito isto, fiquei felicíssimo ao entrar no site do Museu da pessoa, localizado em São Paulo, e perceber que ainda existe sim um rastilho de esperança em meio a tanto niilismo. Ainda existem pessoas preocupadas com pessoas. E isso além de raro é muito bem-vindo e extremamente engrandecedor. 

Passeio pelo arquivo do museu, pelas exposições virtuais, pelo "diário para o futuro" (uma espécie de legado pós-Pandemia), chego até a pensar em deixar o meu registro para a posteridade (ainda estou pensando nisso!) e me deparo com um quadro vasto de narrativas peculiares e não menos geniais. 

Observação importantíssima: a palavra narrativa, uma contribuição oferecida pelo mestre Gilberto Dimenstein, autor do extraordinário Cidadão de papel, pontua de forma muito elegante o contexto principal do projeto, que é compartilhar ideias e saberes do dia-a-dia. Falar de forma rasteira em senso comum realmente não explica o que é a proposta aqui. Nem de longe. 

São homens e mulheres das mais diferentes classes sociais e cleros e sexualidades, livres de amarras e pré-conceitos, a serviço da criação em conjunto de um conteúdo linguístico que se perpetue e dê frutos entre as próximas gerações. Aliás, isso é primordial: que a geração seguinte continue esse trabalho, se permita redescobrir-se (algo que os mais jovens andam precisando demais!). 

Grafiteiros, poetas, donas de casa, lavadeiras, professores, travestis, escritores de renome, motoristas de aplicativo, documentaristas, mulheres com dificuldade para engravidar, uma mulher que teve a infância roubada pelo trabalho precoce fabricando a sua primeira "boneca", o taxista que vê um bebê nascer dentro do seu veículo... São inúmeras as lembranças, no melhor estilo da chamada literatura oral. E enfatizo: é apaixonante ouvir todas essas histórias e entender o quanto cada uma dessas jornadas é indispensável para entendermos esse todo complexo - e controverso - que chamamos de população brasileira. 

De chato mesmo me pareceu apenas uma sensação de que aquilo que chamamos de povo atualmente não parece muito interessado em projetos como esse. Não dá a menor bola. Prefere discussões babacas sobre polarização política na internet (e quando digo discussões, refiro-me à debates rasos e sem o menor interesse de promover um consenso. Pelo contrário: querem ganhar a conversa no grito, como se só pudéssemos viver sob um pensamento único) e vídeos imbeciloides e infantis em redes sociais e canais de vídeo. 

Em suma: nos lobotomizamos e nos orgulhamos dessa falsa sensação de conforto produzida pela ignorância plena. E isso é terrível. 

Portanto, se você - como eu - também pretende sair da bolha ideológica e inumana na qual nos tornamos nos últimos anos, dê uma conferida em https://museudapessoa.org/. Se for Paulista, vá até lá. Confira pessoalmente. Aposto que sairão transformados da experiência. Eu, sem sombra de dúvidas, saí. 

Ou, em outras palavras, se permita RECOMEÇAR.

P.S: e ainda tem gente que diz que não se aproveita nada de bom ficando em casa em tempos de Coronavírus... 


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