Vivemos em meio a uma sociedade estranha, excêntrica, instável e violenta em demasia. Diria mais: grotesca em muitos aspectos. E ainda assim tem quem a defenda a todo custo e diga a plenos pulmões que caminhamos rumo ao progresso e, por isso, tanta autodestruição e fúria acumulada. "É impossível concluirmos a nossa jornada sem passarmos por tudo isso; são os planos de Deus", me disse outro dia desses na rua um homem que conheço há anos e que sempre considerei de moral deturpada e dúbia, logo a última pessoa que deveria falar sobre planos divinos.
E ao escrever a expressão planos divinos no parágrafo anterior chego àquela questão que considero um dos maiores catalisadores desse processo destrutivo no qual transformamos o mundo e por conseguinte a sociedade. Refiro-me ao fanatismo religioso.
Contudo, é preciso antes mencionar um pequeno parênteses: somos uma sociedade repleta de fanatismos os mais diversos. Vejo fanatismo deliberado dentro das torcidas organizadas de futebol, nos partidos políticos e à sua maneira até mesmo nos fãs de filmes da Marvel e da DC (principalmente quando eles não conseguem se abrir para a possibilidade de uma sétima arte além da produzida por essas duas companhias). Enfim... Essa doença que costuma ver o outro como alguém menor ou irrelevante porque ele não se assemelha a mim tomou conta do mundo de forma devastadora. E quando ela está acrescida do fator religioso então, sai de baixo!
Quando fiquei sabendo da existência do longa do diretor Antonio Campos, O diabo de cada dia, e do fato dele tocar exatamente nessa questão imediatamente me interessei pela produção. Qualquer diretor de cinema que rediscuta o discurso religioso à luz da razão e não do individualismo arrogante merece a minha presença diante da tela de tv ou da sala de cinema.
Pois bem: o filme é não somente avassalador e fulminante em suas intenções como também inebriante para todos aqueles que (ainda) não perderam a sua lucidez e entendem que o mundo não se resume unicamente às palavras proferidas nos livros sagrados.
Vemos a narrativa do escritor Donald Ray Pollock - autor do livro que deu origem a esta produção e também narrador da história - se debruçar sobre um grupo de pessoas extremamente contraditórias que vêm sendo classificadas nos últimos anos pela chamada "nova ordem mundial" de servos de Deus. E a todo momento, enquanto me estarreço com suas decisões e escolhas, falo comigo mesmo: "se isso é ser um servo do criador, é facilmente compreensível o porquê de tantas pessoas ao redor do mundo preferirem o ateísmo".
Sim, meus caros leitores, para mim o filme é brutal nesse nível!
E dentre os personagens esmiuçados aqui dois chamam a minha atenção logo de cara: o Reverendo Preston Teagardin (a segunda interpretação interessante do ator Robert Pattinson que eu vejo esse ano em pouco mais de duas semanas), o retrato vivo da apologia cristã contemporânea, seja dentro de sua paróquia ministrando cultos enaltecedores e esperançosos, seja fora se envolvendo com as filhas de seus fiéis; e Willard (Bill Skarsgard, que ganhou notoriedade nos últimos anos após sua interpretação do palhaço Pennywise em It: a coisa), um homem simples, mas de fé cega, capaz de sacrificar o que for necessário para obter a atenção e o poder de Deus.
Contudo, eles não estão sozinhos. Por toda a extensão do longa nos depararemos com uma plêiade de seres humanos os mais cafajestes e sórdidos possível, mas logicamente "repletos de boas intenções". O problema: eles se esquecem que até mesmo o inferno - para quem acredita nele, é claro! - está cheio delas.
Até mesmo o último rastilho de lucidez dentro desse universo deprimente e atroz, o jovem Arvin (Tom Holland), sabe da dificuldade de permanecer puro e isento dessa parte nefanda e contraditória do mundo. Até ele, mesmo para defender a honra de um ente familiar, terá que recorrer às maiores atrocidades e vilanias. Pois como eu disse no primeiro parágrafo desta crítica: vivemos numa sociedade violenta em demasia.
O longa-metragem chega ao seu fim e me deixa prostrado no sofá da sala, completamente arrasado. Vi alguns críticos de cinema na internet dizendo que sentiram falta do lado bom do mundo para contrabalançar em meio à tanta ganância, depravação e falta de ética. Eu também senti. Entretanto, fiquei também curioso para ler o romance de Pollock. Pareceu-me que ele fala de um EUA que vemos pouquíssimo, já que o país sempre gostou de se vender através de suas glórias e feitos. Achei interessante conhecer esse outro lado da América, o depressivo, o amoral, o indigesto. E nisso essa produção matou a pau.
E se é possível extrair um legado de O diabo de cada dia, prefiro deixar como recomendação a seguinte frase: cuidado com pra quem você anda rezando ultimamente. Você pode estar pedindo da maneira errada.
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