Existem cinemas feitos para arrebanhar cifras estratosféricas, lotar cinemas multiplex e alienar a cabeça de espectadores facilmente manipuláveis enquanto eles consomem pipoca e refrigerante. E também existem cinemas que incomodam tanto, mas tanto, que o último lugar no qual são exibidos é a própria sala de cinema e, por isso, precisam procurar seu próprio espaço, seu próprio modelo de distribuição. Mas ainda assim, com toda essa dificuldade e luta, fazem história e marcam uma geração.
O cinema marginal (também conhecido, na época, como cinema de invenção ou movimento udigrudi, uma corruptela da expressão underground) cabe perfeitamente nessa categoria. E ainda digo mais: acho que é o melhor exemplo de cinema cult que nós temos em toda a nossa cinematografia.
Ponto vital para entendermos o que foi esse movimento: é praticamente impossível falar do cinema marginal sem mencionar o grupo do cinema novo, pois parte da temática dos marginais (expressão, por sinal, à qual eles próprios não gostavam de se ver associados) partia de um sentimento de decepção com o outro grupo. Eles, os marginais, reclamavam que os cineastas do cinema novo haviam traído sua própria proposta cinematográfica ao deixar de lado a chamada estética da fome - que retratava as injustiças sociais da época - para realizar um cinema mais comercial, de apelo popular. E o que eles queriam mesmo era desconstruir a realidade vivida naquela época.
O pontapé inicial é dado quando os militares decretam o Ato Institucional número 5 (em 1968) e endurecem ainda mais a vida dos cidadãos brasileiros durante o regime militar. A repressão ganha status e os cineastas, revoltados, pois tiveram suas vidas devassadas, alguns até presos, decidem fazer de sua sétima arte uma luta contra o governo. Em outras palavras: mais do que mera forma de arte, os filmes desse período ganham o status de oposição ao governo, por suas temáticas fortes e, por vezes, dolorosas.
A estética proposta pelo grupo era o grotesco. Logo, o público espectador daquele período poderia esperar por absolutamente tudo: imagens imperfeitas, desfocadas; enquadramento longe do convencional; deboche, ironia, exotismo, política, violência, sexo, escatologia, os corpos dos atores em cena ganham um novo aporte. Até mesmo a paródia e a chanchada, criticada pelos artistas do cinema novo, é revalorizada aqui. As tramas são insólitas, abordam o incomum, em muitos casos o anormal. Não tem o menor compromisso com a norma culta ou a regra. Pelo contrário... Querem chocar, incomodar o quanto puder.
Que o digam o jovem que mata os pais à faca e depois vai ao cinema; o marginal popstar, que assalta e se aproveita de mulheres indefesas, levando à loucura as autoridades policiais, mais conhecido como o bandido da luz vermelha ou mesmo Sônia Silk, a prostituta que sonha ser cantora de rádio, todos personagens anti-heroicos, desestruturados, à margem da sociedade, como bem preferem os cineastas desse período!
As produções, de baixo orçamento, praticamente experimentais, são produzidas em sua grande maioria na Boca do Lixo, em São Paulo (produção essa que, anos depois, acabou estigmatizada ou rechaçada como vulgar por alguns setores da sociedade, tendo em vista a temática erótica que propunha em muitos longas) e na Belair Filmes, no Rio de Janeiro (produtora idealizada pelos cineastas Rogério Sganzerla e Júlio Bressane, que realizou sete longas mas acabou fechando as portas por pressão da ditadura).
Dentre os grandes realizadores desse período (além dos fundadores da Belair), faz-se imprescindível aos espectadores de hoje e das próximas gerações conhecer a obra de Carlos Reichenbach (que, anos depois do fim do movimento, realizaria os fundamentais Lílian M.- relatório confidencial e Filme demência), Ozualdo Candeias (responsável pelo pioneiro A margem), Andréa Tonacci, José Mojica Marins (o Zé do Caixão), Olney São Paulo (do extraordinário Manhã cinzenta) e Luiz Rozemberg. E isso para ficar apenas nos nomes mais óbvios.
E para quem deseja conhecer um pouco do clima barra-pesada daquela época e do sufoco pelo qual os artistas daquele período passaram recomendo de olhos fechados o média-metragem Horror Palace Hotel, do diretor Jairo Ferreira - facilmente encontrado no you tube -, que embora seja de 1978 (portanto, posterior ao cinema marginal) mostra com exatidão o tom de frustração do meio artístico com o país naqueles tempos sombrios. Considero a obra um documento histórico!
De tristeza mesmo somente o fato de que a geração posterior (da chamada retomada do cinema nacional) não deu continuidade ao legado proposto por esses visionários e acabou, com o tempo, preferindo perder tempo com comédias insossas e produções de estética televisiva barata e artificial. Mesmo os cineastas de viés mais autoral, acabaram tomando um caminho diferente. Eu confesso que gostaria de ver um pouco dessa coragem na nossa sétima arte contemporânea, pois ela anda fazendo falta.
Mais isso é só um mero detalhe desse crítico chato que não tem mais o que fazer e acabou mostrando sua faceta ranzinza no final deste artigo!
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