quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O vade-mécum do nordeste


Mesmo desapontado com o rebaixamento da agremiação, fiquei curioso com o enredo da Porto da Pedra sobre o Lunário Perpétuo. Eu já tinha ouvido falar do livro coisa de uns 20 anos atrás, mas nunca me atrevi a ler. Pensava comigo: "deve ser mais uma daquelas literaturas chatas, rebuscadas, feitas por e para uma elite entediante". Estava redondamente enganado.

E como explicar às atuais gerações o que foi esse grande almanaque repleto de xilogravuras, criado em Valência em 1594 por Jerónimo Cortés, em plena era Google e que a partir de 1700 virou uma espécie de vade-mécum do nordeste e suas tradições?

O Lunário perpétuo foi um precursor - falando de forma grosseira - daquelas antigas Enciclopédias Barsa vendidas de porta em porta Brasil afora. Um emaranhado de conhecimentos os mais diversos, fundamentais para entendermos a vida, a sociedade e mesmo o dia-a-dia corriqueiro. E se pararmos para pensar o que era o mundo naqueles tempos, sem tv, computador, internet ou inteligência artificial, acreditem: isso não era pouca coisa, não! 

Entre seus muitos conteúdos, o Lunário propõe conhecimentos astrológicos, técnicas de sobrevivência para momentos de crise (conservação de mantimentos e como se localizar quando estiver perdido), remédios para curar enfermidades, equações do tempo, instruções agrícolas, em suma, é um grande guia básico para enfrentar adversidades e viver em sociedade naquela era turbulenta. 

E onde entra o nordeste nessa história toda? Não fosse a obra de Cortés e seu pioneirismo a literatura de cordel regional nunca teria visto a luz do dia e não conheceríamos todos aqueles versos e repentes. Muito menos Ariano Suassuna - criador do clássico teatral O auto da compadecida - teria sequer proposto o Movimento Armorial. Logo, como eu pude simplesmente adiar essa experiência literária por tantos anos? 

(Detalhe: ao fim do desfile da agremiação, o carnavalesco responsável pelo enredo, Mauro Quintaes, aparece no estúdio da emissora que transmitiu a festa para comentar o que achou e quase foi às lágrimas, super emocionado. Depois de ler o livro, posso dizer com folga que eu o entendo perfeitamente. Trata-se de um universo fascinante e mais do que atual para entendermos o que é o mundo hoje, que dirá nos próximos anos).

Eu poderia até dizer que o Lunário é uma bíblia não-oficial e, certamente, atrairia a fúria dos cada vez mais antipáticos e opressores religiosos. E, provavelmente, levando em consideração o que a região nordestina se tornou em consequência do livro, não estaria nem um pouco equivocado. Talvez a intenção de seu autor, guardadas as devidas proporções, tenha sido até essa. Mas prefiro deixar essa polêmica em aberto. 

Ao fim, o que sobra é a grandeza de todo esse conhecimento que ganhou as graças do senso comum, da oralidade e de um povo até então fadado ao esquecimento e à ignorância por parte dos poderosos. Portanto, seria até bom - parei aqui para pensar - o surgimento de um novo Lunário, mais moderno, que nos explicasse de forma transparente o que é esse confuso século XXI cheio de contradições e ausência de valores. Estamos precisando disso!   

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