sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

She, Frankenstein


Uma das coisas que mais me atraiu no cinema desde que eu era moleque foi sua capacidade de criar fábulas, mundos imaginários, universos por vezes impossíveis, sem a menor necessidade de transparecerem ser reais (embora a realidade estivesse presente). E nos últimos anos eu andava carente dessa presença nas telas por conta do sumiço (ou falecimento) de diretores que faziam essa passagem da ficção à realidade como ninguém - Terry Gilliam, Alejandro Jodorowsky, Andrei Tarkovski, etc...

Ao sair da sessão de Pobres Criaturas, novo longa magistral de Yorgos Lanthimos, seu maior êxito para mim com certeza foi: ele conseguiu fazer eu reviver esse sentimento cujos dias eu via como contados. 

Bella Baxter (Emma Stone, sublime e minha favorita ao Oscar) é uma criação imperfeita do Dr. Goodwin Baxter (Willem Dafoe). Uma mulher grávida que se suicida e vê o cérebro de seu bebê ser transplantado nela, surgindo assim uma versão feminina de Frankenstein, clássico literário de Mary Shelley. 

Convivendo diariamente com seu criador e futuro noivo, Max McCandles (Ramy Youssef), ela se vê prisioneira num mundo de homens covardes, ególatras e somente interessados em sua própria ciência. Resultado: decide ir embora depois que conhece o sedutor, mas vigarista, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). E durante a viagem vê despertar nela um desejo não só pela liberdade, mas também pelo conhecimento. 

Ela cansou de ver sua experiência de vida sendo ditada pelos outros e decide arriscar-se a tudo e todos, sem rodeios ou melindres. Envolve-se com outros homens - para a fúria de Duncan -, torna-se prostituta e, principalmente, aprende a manipular toda e qualquer situação a seu favor. 

Em outras palavras: Bella é o último resquício de coragem num mundo apegado a convenções e falsos moralismos. E só por isso já vale (e muito) a pena ver o filme de Lanthimos, um mestre na arte de narrar o absurdo e o excêntrico. Contudo, é preciso apreciar todos os detalhes dessa aventura inebriante: a fotografia deslumbrante, a mesclagem entre o preto-e-branco e as cores, a direção de arte escandalosa, e um elenco de apoio afiado e pronto para expor o seu cinismo e seus pontos de vista reacionários a qualquer momento. 

Entre as muitas influências (ou talvez eu tenha é enxergado demais) presentes no longa irretocável, pude perceber na mise-en-scène toques de Tim Burton - mas dos tempos bons de Ed Wood e Edward: mãos de tesoura -, do Terry Gilliam citado acima em obras-primas como As aventuras do Barão de Munchausen e até mesmo uma pitada de E la nave va, de Federico Fellini, na cena da viagem de navio. E deixo aqui um conselho aos espectadores: se permitam fuçar, espiar com atenção; há muito a ser visto (e admirado) nessa peça rara em forma de película. 

Ao fim da sessão, meu deleite e uma ótima impressão: a de que mesmo em meio a tanta caretice e conservadorismo babaca na hollywood dos últimos tempos ainda é possível aos cinéfilos apreciar um cineasta e uma equipe corajosa, disposta a produzir cinema sem tanto apego à rótulos e personagens que não passam de mercadorias caras e repetitivas. 

Depois de Godzilla Minus One, essa é mais uma grata surpresa nesse começo de 2024... 


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