Uma das coisas que mais me atraiu no cinema desde que eu era moleque foi sua capacidade de criar fábulas, mundos imaginários, universos por vezes impossíveis, sem a menor necessidade de transparecerem ser reais (embora a realidade estivesse presente). E nos últimos anos eu andava carente dessa presença nas telas por conta do sumiço (ou falecimento) de diretores que faziam essa passagem da ficção à realidade como ninguém - Terry Gilliam, Alejandro Jodorowsky, Andrei Tarkovski, etc...
Ao sair da sessão de Pobres Criaturas, novo longa magistral de Yorgos Lanthimos, seu maior êxito para mim com certeza foi: ele conseguiu fazer eu reviver esse sentimento cujos dias eu via como contados.
Bella Baxter (Emma Stone, sublime e minha favorita ao Oscar) é uma criação imperfeita do Dr. Goodwin Baxter (Willem Dafoe). Uma mulher grávida que se suicida e vê o cérebro de seu bebê ser transplantado nela, surgindo assim uma versão feminina de Frankenstein, clássico literário de Mary Shelley.
Convivendo diariamente com seu criador e futuro noivo, Max McCandles (Ramy Youssef), ela se vê prisioneira num mundo de homens covardes, ególatras e somente interessados em sua própria ciência. Resultado: decide ir embora depois que conhece o sedutor, mas vigarista, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). E durante a viagem vê despertar nela um desejo não só pela liberdade, mas também pelo conhecimento.
Ela cansou de ver sua experiência de vida sendo ditada pelos outros e decide arriscar-se a tudo e todos, sem rodeios ou melindres. Envolve-se com outros homens - para a fúria de Duncan -, torna-se prostituta e, principalmente, aprende a manipular toda e qualquer situação a seu favor.
Em outras palavras: Bella é o último resquício de coragem num mundo apegado a convenções e falsos moralismos. E só por isso já vale (e muito) a pena ver o filme de Lanthimos, um mestre na arte de narrar o absurdo e o excêntrico. Contudo, é preciso apreciar todos os detalhes dessa aventura inebriante: a fotografia deslumbrante, a mesclagem entre o preto-e-branco e as cores, a direção de arte escandalosa, e um elenco de apoio afiado e pronto para expor o seu cinismo e seus pontos de vista reacionários a qualquer momento.
Entre as muitas influências (ou talvez eu tenha é enxergado demais) presentes no longa irretocável, pude perceber na mise-en-scène toques de Tim Burton - mas dos tempos bons de Ed Wood e Edward: mãos de tesoura -, do Terry Gilliam citado acima em obras-primas como As aventuras do Barão de Munchausen e até mesmo uma pitada de E la nave va, de Federico Fellini, na cena da viagem de navio. E deixo aqui um conselho aos espectadores: se permitam fuçar, espiar com atenção; há muito a ser visto (e admirado) nessa peça rara em forma de película.
Ao fim da sessão, meu deleite e uma ótima impressão: a de que mesmo em meio a tanta caretice e conservadorismo babaca na hollywood dos últimos tempos ainda é possível aos cinéfilos apreciar um cineasta e uma equipe corajosa, disposta a produzir cinema sem tanto apego à rótulos e personagens que não passam de mercadorias caras e repetitivas.
Depois de Godzilla Minus One, essa é mais uma grata surpresa nesse começo de 2024...
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