Eu certamente já disse isso em outras críticas cinematográficas que escrevi ao longo dos anos, mas não custa repetir pois o discurso continua valendo: a sétima arte evoca como poucos a loucura do ser humano. E quando se trata de hollywood, então, uma meca das tentativas mais alucinógenas e nonsenses de se tentar entender o que é a humanidade, multiplique essa frase por um milhão e ainda assim não conseguiremos sequer arranhar a sua estrutura por vezes deturpada.
Contudo, há casos dentro do cinema norte-americano e mundial que extrapolam ainda mais o senso de realidade ou normalidade. As filmagens do hoje clássico Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, são um caso típico. O ator Malcolm McDowell afundando de vez sua carreira ao participar de Calígula, de Bob Guccione, outro. E como esquecer de longas como Je vous sale Marie, de Godard e O último tango em Paris, de Bertolucci? Para encerrar esse solilóquio mordaz, relembro de Cannibal Holocaust, o mockumentary de Ruggiero Deodato, obra-prima do trash e do vulgar.
Fica então uma pergunta: por que me lembrar de tudo isso agora? Porque li esta semana um artigo do jornal argentino El País sobre uma das películas mais loucas e que elevam essa categoria do nonsense e do surreal a um patamar nunca antes visto. Refiro-me ao longa A ilha do Dr, Moreau, projeto iniciado pelo diretor Richard Stanley e finalizado pelo mestre John Frankenheimer, que completa duas décadas e meia de existência em 2021.
O filme, que é baseado na obra homônima do escritor H.G. Wells, me fez pensar a todo momento no que o autor acharia se tivesse visto esta transposição para as telas. Sim, o resultado é insano a tal ponto...
O náufrago Douglas (David Thewlis) é resgatado e levado para uma ilha que aparenta, à primeira vista, ser pacífica. O que ele não imagina é que o local é administrado pelo excêntrico Dr. Moreau (Marlon Brando, num de seus últimos trabalhos), que realiza experiências fundindo dna humano e animal e criando aberrações que passeiam livremente pela ilha. Quando se dá conta do lugar onde foi parar já é tarde demais e seu último desejo é conseguir escapar de lá com vida. Parece simples olhado do ponto de vista da sinopse, mas não se enganem! O set de filmagem acabou por provar que essa experiência tem muito mais de comédia dos erros do que de projeto a ser admirado.
O dia-a-dia no set rivaliza em gênero, número e grau com a filmagem da guerra do vietnã feita por Copolla. Absolutamente tudo o que poderia dar errado, deu errado. Brando está lá também numa versão piorada do Coronel Kurtz, ainda mais louco e excêntrico do que nunca, numa disputa de egos mordaz com o ator Val Kilmer, que interpreta seu algoz no longa. Detalhe exótico à parte: ele cismou que o protagonista do livro tinha um tipo de alergia ao sol e quis interpretar seu Dr. Moreau coberto por uma pasta branca, para incompreensão total dos produtores.
O diretor original do projeto, Stanley, que possuía ideias nada ortodoxas para o projeto - incluindo até mesmo cenas de sexo oral e mutilações - surtou e desapareceu no meio das filmagens. E há quem diga que ele recorreu à bruxaria para conseguir o emprego à frente das câmeras. Atores mantiveram relações sexuais entre si, consumo exagerado de drogas e álcool, figurinos tiveram que ser recriados para que um anão servisse de assistente do protagonista (personagem esse que não existia no roteiro original). Mais: o ator que interpreta o anão saiu no braço no set com um outro artista do elenco que viu seu personagem minguar até sua quase exclusão do filme.
E isso para ficar apenas no básico, pois há situações ainda mais tenebrosas.
No final das contas, eu acabo por concordar com a declaração do crítico de cinema Brandon Judell, que chamou o filme de "A vila sésamo de Satanás". E, em alguns momentos, ele realmente parece esse grande samba do crioulo doido. Porém, há quem veja no longa uma produção subestimada ou mal interpretada. Questão de gosto. Como legado para a história do cinema, ficou o desastre financeiro, o framboesa de ouro para Brando e a certeza de que hollywood enlouquece quando quer - e de graça. Um pequeno aparte: eu tenho dois colegas fãs dessa pérola audiovisual, que quando foram comigo ao cinema Paratodos, no Méier, para assisti-lo, o chamaram ao fim da sessão de "um grande estudo de caso sobre a paranoia humana". Enfim... Vai entender a humanidade.
E é dessas insanas opiniões pessoais que nascem os chamados filmes cults!
P.S: para quem quiser saber mais sobre a grande loucura que foi realizar essa produção procurem pelo ótimo documentário Lost soul: A viagem maldita de Richard Stanley à ilha do Dr. Moreau, de 2014 e dirigido por David Gregory, disponível no Amazon Prime. Eu confesso: saí da sessão ainda mais perplexo do que quando fui ver o longa nos cinemas 25 anos atrás.
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