domingo, 19 de setembro de 2021

Vida, arte e dor


Eu acredito mais na arte como consequência do que como entretenimento. E quando a consequência em questão é fruto de uma dor ou revés sofrido, a mim fica a impressão de que o artista se desdobra ainda mais, se supera como nunca antes. Nas artes plásticas isso é praticamente um clichê ou chavão, pois é da natureza de quem cria colocar um pouco de si mesmo, de seus temores e angústias, suas observações meticulosas acerca do mundo, em suas obras. 

E, de quando em quando, o resultado disso é uma obra-prima ou, no mínimo, subestimada por aqueles que não conseguem distinguir um palmo diante do nariz. Vejo na obra da pintora mexicana Frida Kahlo um pouco de ambos: a genialidade e a incompreensão por parte de quem tenta analisar ou definir o seu trabalho. Ela é complexa e muitas vezes partiu de sua própria existência ou temores para construir seu raciocínio. 

Filha de um imigrante alemão e de uma mulher de origem meio indígena meio espanhola, Frida é daquelas pessoas que conhecem como poucos o significado da palavra sofrimento. Foi vítima de uma série de doenças ao longo da vida. Que o diga a poliomielite, que a acometeu com apenas seis anos de idade, deixando-a com o membro inferior direito atrofiado. Aos 18 anos sofreu um grave acidente de trânsito, fraturando três vértebras, a pelve e os ossos da perna direita, sendo submetida a mais de 30 cirurgias. 

Em 1944, após uma cirurgia para corrigir a coluna, ela passou por um difícil pós-operatório e precisou ficar acamada por tempo indeterminado. E foi exatamente nesse período de dor em que ela criou uma de suas telas mais memoráveis: A coluna partida. 

A tela - um óleo sobre masonita de 39,8 x 30,7 cm - é um autorretrato que nos mostra o quanto a dor, o sofrimento, a vida e a arte andam de mãos dadas quando estão a serviço do talento mais puro. Vemos em primeiro plano uma mulher usando uma espécie de espartilho que comprime sua coluna. Porém, é possível enxergar na região onde a coluna vertebral se encontra uma coluna jônica grega, bastante fragilizada. Além disso, seu rosto está banhado de lágrimas e inúmeros pregos perfuram todo o seu corpo (numa representação nítida das dores constantes que a artista sentiu durante esse período). 

Já ao segundo plano é possível vislumbrar uma paisagem árida, rachada como a coluna da pintora, e o sol ao fundo (remetendo à solidão sentida por ela nessa época). Tanto que, anos depois, após relembrar toda a experiência, as inúmeras cirurgias que sofreu, Frida chegara a dizer: "E a sensação nunca mais me deixou, de que meu corpo carrega em si todas as chagas do mundo". Nem mesmo seu casamento cheio de controvérsias com o muralista Diego Rivera provocou uma reflexão tão grande em sua vida!  

Ao fim e após ver e rever a tela em seus múltiplos detalhes, a sensação que me fica é a de estar diante de um grande ato de resiliência. Frida faz de A coluna partida, mais do que mera pintura, um serviço de utilidade pública, para todos aqueles que já tiveram que conviver com algum tipo de trauma e invalidez. A própria comunidade médica reconhece isso. E tudo o que a artista produziu após este trabalho guardou, no mínimo, relações íntimas com ele. 

Alguns especialistas e estudiosos da história da arte costumam fazer um paralelo entre esta pintura e O martírio de São Sebastião e há razões nítidas para isso, embora na tela de Gregório Lopes a figura fragilizada esteja rodeada de homens armados, aptos a executá-lo a qualquer momento. 

E cabe aqui um detalhe pessoal deste autor intrometido que vos escreve: embora o autorretrato de Frida esteja com os seios nus à mostra eu nunca consegui relacionar qualquer tipo de sexualidade ou erotismo à tela. Simplesmente por que a carga de sofrimento e renúncia da mulher não o permite. Logo, A coluna partida não tem a ver com louvor e sim com superação.

Para quem quiser apreciar a obra-prima ao vivo e a cores ela se encontra no Museo Dolores Olmedo Xochimilco, na Cidade do México. E eu confesso: daria tudo para ver a tela com os meus próprios olhos agora, neste exato momento. 

P.S: custa indicar aos interessados em saber mais sobre Frida Kahlo o excelente longa-metragem Frida, de Julie Taymor, com a atriz Salma Hayek interpretando a revolucionária pintora? Honestamente, eu acho que não. Vai lá ver, vai! Não custa nada.


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