Sabe toda essa geração extraordinária e talentosa de cineastas negros que anda em voga na atual hollywood? Pois bem: para aqueles que se perguntam quando foi que tudo isso começou de fato, com força, ideias, bons roteiros e uma ousadia absurda, o primeiro nome que precisa vir à sua cabeça é o diretor Melvin Van Peebles. Mais do que simplesmente dirigir cinema, Melvin é responsável por toda a reviravolta que a comunidade negra deu nas últimas décadas quando o assunto é arte e cultura. E para quem acha isso pouco ou quase nada, digo-lhes: "vá ser negro nos Estados Unidos da América".
Dito isto, é com um enorme pesar que fico sabendo (atrasado) que Melvin Van Peebles nos deixou, aos 89 anos, no último 21 de setembro. E podem acreditar: agora que ele e John Cassavettes não se encontram mais entre nós, o cinema independente americano NUNCA MAIS será o mesmo.
Nascido em Chicago em 1932, Van Peebles se formou em literatura pela Ohio Wesleyan University, fez parte da Força Aérea (na qual serviu por quase quatro anos) e realizou através de seus filmes um grande ensaio para entendermos o que significava ser negro num país contraditório e opressivo como os EUA. Isso sem contar seu trabalho como ator e também romancista.
Seu livro The big heart e seu primeiro curta, Pickup Men for Herrick, criaram as bases do que seria sua sétima arte. Entre a natureza itinerante e seu discurso por vezes radical criou, mais do que uma mera expressão de arte, uma nova forma de pensar para os afro-americanos, que não só gostaram da ideia como a replicaram em gênero, número e grau.
Prova viva disso é seu clássico Sweet Sweetback's Baadasssss Song, de 1971, que deu o pontapé inicial na grande anarquia que foi a chamada blaxploitation. O longa, que Melvin financiou de forma privada com seu próprio dinheiro e dirigiu, roteirizou, editou, escreveu a trilha sonora e até dirigiu a campanha de marketing, mudou completamente o curso da história do cinema norte-americano, além de incutir na cabeça de outros jovens de cor o interesse por aquela forma de rebeldia.
Contudo, sua filmografia não se resume unicamente a este filme. Melvin enveredou por várias frentes, do cinema de arte europeu (assistam urgentemente A história de um passe de três dias) à comédia tradicional hollywoodiana (com Watermelon man), passando por produções da Broadway (filmou sua própria peça, Don't play us cheap), romances e performances. Em outras palavras: era um artista completo, a despeito daqueles que pensavam que ele só sabia dirigir bem a violência urbana do gueto onde vivia.
O criador icônico acabou por morrer justo no momento em que seu trabalho voltava a ser celebrado. Seu longa mais famoso teria uma exibição do 50º aniversário no Festival de cinema de Nova York, a Criterion Films preparava o lançamento do box Melvin Van Peebles: Essential Films e sua peça Ain't Supposed to Die a Natural Death teria um revival programado para retornar à Broadway no próximo ano. Uma pena. Ele não conseguiu aguardar por tudo isso.
E fazendo ainda referência ao primeiro parágrafo, sempre serei da opinião de que seu maior legado para a indústria cinematográfica norte-americana foi abrir as portas para nomes como Spike Lee, Barry Jenkins, Jordan Peele, Steve McQueen, Ryan Coogler e tantos outros. Acreditem: não fosse Melvin jamais veríamos a ascensão de longas como Boyz n' the hood, Pantera negra e 12 anos de escravidão como vemos hoje. E ainda assim vai ter gente lendo este artigo aqui e dizendo que eu estou é "inventando história".
Dizem que quando os grandes partem nós choramos, pois sabemos de antemão que aquela realidade que eles produziram nunca mais voltará. E assim que me sinto hoje. Melvin van Peebles promoveu uma vasta reflexão na terra do Tio Sam e isso é, por si só, muito mais do que simplesmente realizar um longa-metragem de ficção sobre desajustados sociais ou minorias. Se hoje os EUA vivem em meio ao black lives matter, ele com certeza deu uma enorme contribuição para isso. E merece aqui todo o meu respeito.
Fica com Deus, mestre! E o seu discurso arrojado, sem papas na língua, vai fazer muita falta aqui embaixo.
P.S: quando tiverem tempo assistam O Retorno de Sweetback, de seu filho Mario Van Peebles, que nos conta como foram os bastidores do maior clássico dirigido por Melvin. E eu duvido que depois de ver esta pequena joia vocês, cinéfilos de verdade, não vão querer assistir o original de 1971.
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