sábado, 4 de setembro de 2021

Sr. Entrevista


Há tempos eu quero escrever sobre o documentarista e diretor Eduardo Coutinho e sempre fico adiando. Talvez por medo. Sim, medo. De sua extrema inteligência e sua perspicácia aguçada. Nunca escondi das pessoas com quem converso sobre sétima arte que sou uma admirador notório de Coutinho. Mais: o considero uma das melhores coisas da nossa cinematografia e com folga. E a produção audiovisual brazuca anda carente de um talento como ele, que infelizmente nos deixou sete anos atrás. 

E sabe qual foi o melhor legado produzido por ele ao longo da carreira? A sua inesgotável capacidade de saber conversar com seres humanos os mais diversos, do milionário ao pé rapado. Coutinho não precisava se transformar numa réplica exata de seus entrevistados para poder entendê-los. Bastava ser ele mesmo. E era justamente esse "ele mesmo" que fazia com que seus interlocutores se abrissem de tal forma a entregar confissões inacreditáveis. Em outras palavras: era fácil dividir uma sala com ele para bater um papo. 

Sim, isso mesmo que vocês leram. O cinema de Eduardo Coutinho é, em seu íntimo, um grande e agradável bate-papo!

Que o diga sua obra seminal, Cabra marcado para morrer, considerado por muitos críticos e profissionais do meio cinematográfico como o maior documentário brasileiro de todos os tempos. Teve suas filmagens interrompidas em pleno período militar por conta de seu caráter político e reacionário e só pode retomar o projeto décadas depois, encontrando seus personagens mais velhos (e ainda mais lúcidos acerca de sua realidade social). Resultado: um fenômeno cultural que ganha eco na história de nosso cinema ao lado de longas como Terra em transe, O bandido da luz vermelha, Limite e tantos outros (hoje) clássicos.

Contudo, não se enganem: Eduardo não foi cineasta de um único longa célebre. Longe disso. Continuou sua caminhada em busca de vozes, relatos, experiências amargas e/ou esperançosas. Pode até parecer exagero o que vou dizer aqui, mas às vezes eu tenho a impressão de que o diretor conversou com praticamente todo mundo, tamanha a diversidade de depoimentos que coletou ao longo da vida. 

Foi dos catadores de lixo de Itaóca, em São Gonçalo no Rio de Janeiro (em Boca de lixo) aos residentes de uma favela ávidos por dividirem suas experiências religiosas (em Santo forte), passando por trabalhadores do movimento sindicalista (Peões) e dançarinos do Grupo Galpão em ensaio para um espetáculo (Moscou) para construir um grande compêndio sobre a vida pública e privada do país. E quando nos damos conta do conteúdo magistral que está registrado ali é impossível não atestar o quanto somos uma nação plural, confusa, perdida, buscando caminhos muitas vezes a esmo. E isso é o que o cinema de Coutinho tem de melhor: essa sensação de niilismo, de "e se". 

Dois filmes seus mantém comigo uma adoração quase doentia e por isso sempre os revejo e falo deles separadamente: o extraordinário Edifício Master, no qual acompanha a vida de dezenas de moradores de um prédio em Copacabana, mostrando o lado B da zona sul carioca e Jogo de cena, no qual através da publicação de um simples anúncio de jornal reencena histórias brutais, amargas e nostálgicas de um grupo de mulheres do cotidiano, rompendo as fronteiras entre ficção e realidade de forma ímpar. 

Entretanto, é preciso um aparte: ele, Coutinho, nunca precisou de um motivo ou um roteiro pré-estabelecido para contar uma história. Não, meu caros. Muitas vezes apenas sair de casa com a equipe de filmagem, como um bom flanêur, à perder de vista, já rendia uma grande história. 

O que ele procurava eram narrativas inéditas, histórias que ainda não havia ouvido. E esse sentimento de descoberta constante, de frescor, era tão libertador em sua obra que em alguns momentos assustava seus próprios espectadores. Eu mesmo, em alguns momentos, me peguei pensando: "como ele vai fazer um filme sobre absolutamente nada?". E ele fez. E fez porque simplesmente quando o assunto em questão é arte não existe esta história de nada. Bastava sentarmos e acompanhar seus passos, pois logo ele nos mostraria onde a história a ser contada estaria. 

Grande Eduardo Coutinho! Não foi à toa que até a Academia de artes e ciências cinematográficas de Hollywood te reconheceu. E enquanto escrevo esse arremedo de artigo me pego triste por um momento, pois me lembrei agora que nunca mais poderei ver um filme inédito seu. 

E o cinema nacional merece tudo, menos isso...


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