Se teve algo que eu vi com próprios olhos com frequência em todo esse tempo em que me considero cinéfilo foi brasileiro dizendo de boca cheia: "detesto cinema nacional". Gente que adora se autonomear patriota, mas não faz a menor questão de conhecer a própria cultura, a própria língua, o próprio hino nacional. E ainda se vangloria disso nas rodinhas de bar e festas de familiares.
Pobres coitados! Quando falam de nossa produção audiovisual só conhecem mesmo nossas versões tupiniquins de enlatados americanos e europeus. Ou seja: aquelas comédias românticas insossas que invadem nossas salas de projeção de tempos em tempos, com direito a continuações as mais diversas. Uma pena. Nosso cinema é bem mais do que isso.
Vejam, por exemplo, a Atlântida Cinematográfica que completou 80 anos de sua fundação no último 16 de setembro. Foi, sem sombra de dúvidas, nossa melhor tentativa até hoje de criar uma hollywood nacional (em outras palavras: promover o desenvolvimento industrial da nossa sétima arte). E mesmo não tendo vingado como deveria - e olha que ela merecia! - entrou para a memória afetiva de toda uma geração de cinéfilos que hoje sentem falta desses tempos gloriosos.
Ideia que partiu da dupla Moacir Fenelon e José Carlos Burle, a empresa tinha a pretensão de unir arte e popularidade, tanto que além de produzir seus longas também os distribuía, e logo encontrou na figura de Luiz Severiano Ribeiro - maior nome do mercado exibidor até hoje e cujo grupo é proprietário da Atlântida desde 1947 - um parceiro de peso.
Contudo, nos dois primeiros anos de existência a Atlântida se limitou a produzir apenas cinejornais, um formato de extrema popularidade no período da segunda guerra mundial. É desse período programas como o IV Congresso Eucarístico Nacional e Atualidades Atlântida. Já os longas ficcionais só começam a dar as caras com Moleque Tião em 1943.
A consequência disso? A enxurrada de musicais que começam a pipocar nas telas. A empresa queria levar aos espectadores o registro audiovisual dos cantores que faziam sucesso no mercado fonográfico daquela época, artistas esses cujo público só conhecia pela voz através do rádio ou nas páginas das revistas. Resultado: Carmen Miranda, Francisco Alves, Emilinha Borba, Ivon Curi e tantos outros talentos ganham de vez o estrelato e a paixão de seus fãs.
Outro aspecto fundamental para entendermos o sucesso da produtora foi o fato de seus longas trazerem elementos do teatro de revista, do carnaval e do circo para suas narrativas. Logo, o público se identificava imediatamente, principalmente pelo caráter bem humorado de suas histórias. E a partir daí (leia-se: por volta de 1947) que as chanchadas começam a ditar o ritmo do mercado. E nos apresentam a eterna dupla Oscarito e Grande Otelo.
Mas não pensem os incultos que a dupla levava a empresa nas costas. Não, meus caros leitores! Havia espaço também para outros nomes de peso, como Roberto Faissal, José Lewgoy (o grande vilão do estúdio, que eu conheci pessoalmente na época em que trabalhava no cinema Art Palácio Copacabana, que hoje infelizmente não existe mais), Anselmo Duarte (futuro diretor de O pagador de promessas, vencedor da Palma de Ouro em Cannes), Cyll Farney, Fada Santoro, Eva Todor, Fregolente, Zezé Macedo (que a geração posterior à Atlântida conhece mais como a Dona Bela da Escolinha do Professor Raimundo), Mara Rúbia, Jorge Dória, Wilson Grey, Ankito, Adelaide Chiozzo e tantos outros.
Sempre que me perguntam quais são meus longas preferidos da produtora eu respondo com o mesmo Top 5. E como não pretendo mexer em time que está ganhando há tantos anos, ei-los para a vossa apreciação (sem moderação, é claro!):
Nem Sansão Nem Dalila, de Carlos Manga (1954)
O Homem do Sputnik, de Carlos Manga (1959)
Carnaval no Fogo, de Watson Macedo (1949)
Carnaval Atlântida, de José Carlos Burle (1950)
Este Mundo é um Pandeiro, de Watson Macedo (1947)
Entre 1941 e 1962, A Atlântida produziu ao todo 66 filmes. Infelizmente, para os pesquisadores e fãs da boa sétima arte, algumas dessas produções foram perdidas para sempre num trágico incêndio ocorrido em suas instalações dez anos antes (informação essa que me faz pensar rapidamente no recente incêndio ocorrido na Cinemateca Brasileira, em SP, e do quanto nossa cultura é muitas vezes refém do descaso e/ou da fatalidade pura e simples. E isso é por demais terrível!)
Ao final deste humilde artigo-homenagem, fica uma certeza: do quão rica pode ser nossa produção audiovisual, que poderemos revisitar sempre que quisermos em algum site de vídeos da internet ou na programação do Canal Brasil.
P.S: ao mencionar no top 5 o longa Este mundo é um pandeiro, de Watson Macedo, lembrei-me do livro homônimo Este mundo é um pandeiro: a chanchada de Getúlio a JK, do escritor José Augusto, que eu li e reli na época da faculdade. Deixo ele aqui como referência para quem quiser saber mais - sobre a Atlântida e também o período - que precisa ser redescoberto pelas novas gerações o quanto antes.
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