quinta-feira, 4 de junho de 2020

A nossa pioneira das artes


Eu lembro da primeira vez que ouvi falar da tela Abaporu, da pintora modernista Tarsila do Amaral. Eu era moleque - coisa de uns 11 anos, mais ou menos - e tinha um professor, de nome Gabriel, que adorava trazer para a turma (fora do cronograma regular do curso, é lógico!) curiosidades artísticas e históricas sobre o país. E me lembro exatamente da minha reação de estranhamento ao vê-la. 

Eu era espectador de seriados tokosatsus que eram exibidos na hora do almoço no SBT (programas como Spectroman e Ultraman) e comparei a figura monstruosa com as criaturas que os heróis japoneses enfrentavam em cada episódio. Eu sei, eu sei... Mas deem um desconto. Eu ainda era muito novo naquela época. 

O tempo passou, eu comecei a ler - alucinadamente, é bom que se diga! - e minha curiosidade sobre a personagem tarsiliana só fez aumentar. Na verdade, tudo quanto era figura disforme na história da arte chamava a minha atenção (na verdade, ainda chama). E o resultado dessa curiosidade chega hoje às vias de fato quando decido fazer este humilde artigo sobre a tela. 

Abaporu, que segundo sua origem tupi-guarani significa "homem que come gente, canibal, antropófago", não possui um gênero definido. Não se sabe ao certo até hoje se é um homem ou uma mulher. De concreto, uma certeza: foi pintado por Tarsila em 1928 e dado de presente de aniversário à seu marido, o poeta Oswald de Andrade, que não só adorou o presente como tomou-o como pontapé inicial para a criação do movimento antropofágico (que visava deglutir a cultura estrangeira, incorporando-a na realidade brasileira para dar origem a uma nova cultura transformada, moderna e representativa do nosso país). 

Contudo, seria chover no molhado dizer aos leitores desse texto que tal obra se satisfará com comentário tão genérico. Pelo contrário... A tela de Tarsila é complexa e cheia de reflexões as mais diversas, tanto sobre nossa história como também sobre a cruel realidade do povo. Logo, é preciso atentar detalhadamente para cada aspecto do quadro. 

Ficamos impressionados logo de cara com o corpo disforme que toma a maior parte da tela. É uma criatura de cabeça pequena e pés e mãos gigantescos, fazendo com que à primeira vista, muitos pensem tratar-se de uma figura deficiente ou portadora de uma doença incurável. Nada mais errado do que isso. 

A cabeça minúscula é uma representação imagética, um sinal da condição da desvalorização do trabalho intelectual no nosso país (condição essa que se perpetua até os dias de hoje, infelizmente). Já os pés e mãos avantajados denotam o sofrimento do trabalhador brasileiro, a demasiada importância dada à força braçal e ao trabalho físico (tem que faça hoje, inclusive, uma leitura de que ela estaria cutucando os empresários e latifundiários acerca da condição escravocrata do mercado de trabalho). 

Em segundo plano (e digo isso não por demérito, e sim pelo fato da figura humana representada realmente chamar quase toda a atenção para si) vemos um sol causticante e um grande cacto. O sol, que aqui ganha também uma simbologia relacionada ao olhar - ele lembra um grande olho que tudo observa de longe - reflete sobre as condições duras, quase desumanas, que envolvem o trabalho rural (nota: Tarsila foi criada, ainda pequena, numa fazenda e conviveu de perto com essa realidade). Já o cacto traz em seu bojo uma lembrança da seca e da resistência e estabelece um paralelo com o povo brasileiro, mais especificamente o nordestino, bem como sua capacidade de resiliência.  

Detalhes importantes: as cores que predominam na tela (o verde, o amarelo e o azul) constituem três quartos das cores presentes na bandeira nacional, o que remete à um ícone de brasilidade. E, além disso, a ideia do gigantismo presente aqui já havia sido trabalhada anteriormente por Tarsila cinco anos antes, quando pintou o quadro A negra (procurem no google images e comparem as duas telas). 

Duas linhas críticas costumam associar o Abaporu à ideia de depressão, de melancolia, o retrato de um homem cansado de viver única e exclusivamente para o trabalho (trabalho esse, quase sempre mal remunerado)  bem como a associação - tem quem chame até releitura - com a escultura O pensador, de Auguste Rodin (confesso que essa relação sempre me deixou meio confuso, pois enxergava os dois trabalhos em pólos distintos). 

Porém, críticas à parte, a tela de Tarsila é não somente um ato visionário como também pioneira em nossas artes. Comprada pelo colecionador argentino Eduardo Constantini  em 1995, num leilão em Nova York, por 1,5 milhão de dólares, encontra-se exposta no MALBA (Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires) e é considerada até hoje nossa tela mais valorizada e reconhecida no mercado internacional. E com justiça. é claro! 

Trata-se por si só de um grande ensaio visual sobre a realidade do país, sem protecionismos ou invencionices. E muitos autores de garbo da nossa literatura não conseguiram escrever até hoje o que Tarsila pintou de forma tão brilhante.  

E mesmo com um legado desses, ainda tem gente neste país mesquinho que não dá a mínima para artes plásticas...

P.S: quando pude ver a tela Abaporu com meus próprios olhos, na época das olimpíadas, numa exposição realizada no Museu de Arte do RJ, na Praça Mauá, entendi finalmente o poder dessa pintura e seu significado para a história cultural do país. E prefiro, sinceramente, acreditar que se trata de uma mulher. Nordestina, empoderada e forte, como essas contemporâneas que andam enfrentando os mandos e desmandos do trem desgovernado que virou o nosso país. E por um momento me deu vontade de gritar: "vida longa a ela!".

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