Quando mais novo eu quis de presente de aniversário uma câmara polaroide e minha mãe não quis me dar. Disse mais: "isso é perda de tempo, pois as fotos quando envelhecem ficam amareladas, horríveis". Ela se referia ao tom de sépia típico das fotos envelhecidas, não somente as polaroides. Em nossa coleção de fotos haviam duas nesse formato, feitas num domingo que passamos na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão. E elas realmente pareciam estranhas, mais velhas do que as demais fotos.
E eu então entendi o que ela queria dizer: as polaroides registravam momentos específicos da vida cotidiana e, com o passar do tempo, meio que perdiam a sua razão de ser, perdiam sua capacidade de registrar de forma nítida aquele momento do clique. Em outras palavras: perdiam a sua relevância.
Eu vi muito disso durante a exibição, na internet, da peça teatral Por Elise, escrita pela atriz e dramaturga Grace Passô. Uma narrativa que fala sobre o amargo hoje que estamos vivendo (embora a montagem que assisti, do grupo Espanca, seja de 2012) e da dificuldade de seguir em frente em meio a um cotidiano tão cheio de cicatrizes e discursos truncados, fabricados.
Os tipos sociais despedaçados que compõem a trama - uma dona de casa que narra a história de seus vizinhos (papel vivido pela própria Grace); um cão que late palavras, numa tentativa desesperada de encontrar um interlocutor em meio a um mundo em frangalhos; um lixeiro em busca de seu pai, que vive correndo pelas ruas à procura de respostas; uma mulher completamente perdida, refém da mendicância de afetos e um funcionário que trabalha como recolhedor de cães doentes - representam uma depressiva cartografia do que virou a humanidade nesse século XXI cheio de dúvidas e cafajestes.
Como único refúgio para lidar com o estresse diário dessa urbe catastrófica apelam para artes marciais (em alguns momentos a truculência do Karatê, em outros a suavidade do Tai Chi Chuan), enquanto convivem com uma rotina ácida e sem muitas expectativas.
A ausência de cenários fez eu me lembrar do excepcional filme Dogville, de Lars Von Trier, ele também - à sua maneira - um grande ensaio sobre a desesperança e o niilismo. E confesso que me peguei confuso ao ouvir música clássica na trilha sonora (acho que a música techno, que muitos chamam popularmente de bate-estaca, com seus ruídos de comunicação implícitos, funcionaria melhor aqui. Mas enfim... Os encenadores deviam saber o que estavam fazendo!).
Há uma série de declarações ditas pelos próprios personagens que dialogam bem com essa tal contemporaneidade vazia. Expressões como "toma cuidado com o que planta" e "eu sou um cavalo correndo na direção do mar" funcionam perfeitamente para explicar esse homem pós-moderno, confuso, em trânsito, uma criatura que perdeu completamente o rumo da estrada que vinha tomando, que se confundiu ao escolher para si péssimos referenciais.
Em suma: uma polaroide cinza, desbotada, amorfa. Por Elise é uma bem construída coletânea delas. E tudo isso exibido diante de nossos olhos em tons mínimos, sem precisar chamar atenção em demasia para luzes, sons e músicas estridentes (algo que o teatro musical tem feito em excesso nos últimos anos).
Há até quem consiga enxergar a montagem como uma esquizofrenia comedida (o que não deixa de ser assustador. Pelo contrário). Ao final da apresentação, fiquei com um gostinho de quero mais na boca. E gostaria de ter assistido o espetáculo ao vivo. Acredito que teria me identificado ainda mais com o texto. Infelizmente coube somente agora, diante da quarentena vigente, o acesso à peça pelo you tube (sempre ele!).
O que faltou dizer? Que a matéria que eu li no UOL sobre o sucesso das lives teatrais, que não se escondem atrás de megaproduções e valorizam em primeiro lugar aos autores e às interpretações, está coberta de razão. Preciso do popular "menos é mais". E eu espero que as artes cênicas continuem mantendo esse canal aberto depois que toda essa pandemia passar.
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