quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O messias que incomoda


Desde que eu comecei a escrever sobre arte e cultura, coisa de uns cinco anos atrás, me dei conta de uma verdade inabalável: a de que a arte é provocadora por excelência. Não importa se você gosta ou não do resultado, daquilo que foi proposto pelo escritor, pelo encenador teatral, pelo cineasta, pelo expositor, pelo músico, etc... Ela, a arte, continuará incomodando, com o intuito de fazer você, espectador, leitor, ouvinte, sair do óbvio, daquilo que chamamos costumeiramente de senso comum. 

Entretanto, por vezes, a arte incomoda antes mesmo de ser vista, sentida, ouvida, lida. Ela incomoda por conta de um fragmento da sociedade que não consegue enxergar nada, absolutamente nada, além do seu próprio umbigo. E acreditem: como vivemos isso no Brasil da última década! 

Dito isto, confesso: foi uma grata surpresa assistir online pelo youtube - mesmo que seus detratores me chamem de canalha, devasso, imoral, entre outros "elogios desagradáveis" - a peça teatral O evangelho segundo Jesus, a rainha dos céus, de Jo Clifford. Trata-se de um espetáculo provocador até a medula e ele precisa ser assim, num país tão cheio de demagogos religiosos. 

A peça de Clifford, que foi adaptada para o português e dirigida por Natália Mallo, já nasceu polêmica mesmo em sua origem. E tudo porque traz a figura de Jesus Cristo representada por um travesti, a atriz Renata Carvalho (brilhante, por sinal). Resultado: censuras e mais censuras e um festival de declarações as mais odiosas ao espetáculo, chegando a ser boicotada em alguns estados por onde passou. 

Contudo, o Jesus de Renata não é nada mais nada menos que o dedo na ferida que nossa sociedade hipócrita e falsamente cristã precisa ouvir. Em outras palavras: ele é o messias que incomoda, pois não atende as expectativas daqueles que vivem para cima e para baixo na cidade com suas bíblias embaixo do braço (muitos deles sem sequer entender um linha do livro) pregando discursos falaciosos, mas cheios das chamadas "boas intenções". 

Em cena, Renata expõe Jesus a nu (como, aliás, foi exposto e muito em sua época; que o diga em sua crucificação), troca de roupa, rebola até o chão ao som do funk pancadão, conversa com o público, flerta com um ou outro, debocha dos eternos recalcados que não conseguem viver suas vidas sem incomodar aos demais, e nem por isso deixa de repartir o pão com seus fiéis ou mesmo relembrar de passagens marcantes de sua vida. É o mesmo Jesus que outrora interveio a favor de Maria Madalena, apedrejada por homens covardes e cheios de moral, e que transformou água em vinho numa festa. 

Agora: vai explicar isso aos fanáticos que veem tudo ao pé da letra e não dão margem para rediscutir a própria história. Aqueles que acreditam que Jesus é loiro e tem olhos azuis.

Infelizmente, vivemos num mundo de extremismos visíveis e provavelmente o mais visível de todos eles seja essa moral religiosa arcaica e enfadonha de certos cleros. Não podemos enxergar além da bolha. Nos encontramos numa versão tecnológica, porém mal feita, do que Platão chamou de A alegoria da caverna. E ai de quem fugir dela! 

O tempo passa, o tempo voa (eu sei... roubei a frase de um antigo comercial de tv), mas a ignorância não só continua numa boa como vem rendendo frutos cada dia mais mórbidos. Temos de enfrentar diariamente o delírio daqueles que desejam a inércia, o conservadorismo tendencioso, a falta de apreço pela mudança. Mas como a própria atriz fala em certo momento do espetáculo: "ela virá, quer vocês queiram ou não".

Ao final do monólogo - que foi gravado de uma apresentação feita no Teatro Oficina, em São Paulo, do mestre José Celso Martinez Corrêa -, enquanto o público aplaude a atriz, completamente extasiado, penso no quanto emburrecemos como nação. O quanto perdemos a capacidade de olhar para o outro. 

Não queremos debater sobre nada: fé, religiosidade, sexualidade, corpo, padrões... Nada mais é pauta. O importante, para muitos, para aqueles que estão no poder inclusive, é a manutenção do mesmo. E quem pensa diferente é sumariamente atacado por isso.

Em suma: viramos uma pátria de covardes.

E, nessas horas, como é bom saber que ainda tem gente corajosa neste país, disposta a tudo. Principalmente a não dar o braço a torcer, a enfrentar, a espernear, a propor um outro olhar. Longa vida a elas!

P.S (eu quase ia me esquecendo de dizer isso): Você, que ficou puto com o especial de natal do Porta dos Fundos, A primeira tentação de Cristo, e com o desfile da Estação Primeira de Mangueira no carnaval desse ano, na boa... Isso aqui não é pra você. Mesmo. 

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