Trabalhei durante dois anos numa rede de cinemas na zona sul do Rio de Janeiro e convivi de perto com os operadores projecionistas. Na verdade, eram as pessoas da empresa com quem mais criei laços de afetividade. Adorava, nos meus horários de intervalo, subir para a cabine e conversar com esses profissionais, aprender um pouco de sua profissão, e principalmente entender um pouco de seus temores. Sim, eu disse temores.
Digo isso porque de todo o quórum que trabalhava na empresa naquela época ninguém pedia mais licenças médicas ou afastamentos temporários do que eles. Convivi com dois, inclusive, que chegaram a pensar em suicídio e pediram demissão antes que a coisa ficasse mais séria e com o tempo entendi a dificuldade de trabalhar sozinho, isolado dos demais funcionários. Acreditem: não é para qualquer um. E não se iludam com a ideia apaixonante de que esses homens trabalham diretamente com a sétima arte, oferecendo entretenimento às pessoas. Pelo contrário...
Esta semana enfim consegui assistir ao longa O farol, do diretor Robert Eggers - que ganhou certa notoriedade aqui no Brasil com seu filme anterior, A bruxa - e ao final da sessão me peguei mais uma vez relembrando desses homens de coragem. E também do desafio que é trabalhar sob pressão, isolados de tudo e de todos.
O farol conta a história de dois faroleiros que precisam tomar conta de seu posto por exatas quatro semanas, até serem resgatados por um barco da firma para a qual prestam serviço. São eles Winslow (Robert Pattinson) e Wake (Willem Dafoe, como sempre ótimo!).
O primeiro é o novato regular, facilmente encontrável em qualquer empresa que se preze. Segue o regulamento à risca e prefere não falar muito sobre sua vida pregressa. Já o segundo, mais velho, acredita mesmo é que as regras que devem ser de fato seguidas são as suas. Ou seja, é o estereótipo vivo do líder, do homem que veio ao mundo para mandar e não gosta de ser questionado ou interrompido.
Enquanto Winslow faz o trabalho sujo ao qual lhe cabe - limpa cisternas, pinta paredes, realiza pequenos consertos -, Wake é o dono da casa e responsável pela luz do farol (algo que logo de cara contraria Winslow, que prefere dividir turnos). E sim, eu já sei o que vocês, leitores, devem estar pensando: a história se resume a isso? A priori é o que o diretor quer que pensemos. Mas lógico que ele não conseguiria tal feito por muito tempo (vide o que fez em A bruxa).
Pescaram pelo menos a essência do que foi dito nos dois primeiros parágrafos? Pois bem: essa realidade cai como uma luva para explicar a transformação que acometerá Winslow com o passar dos dias. Trata-se de um homem solitário, sem o menor apoio de seu superior (que só consegue lhe dirigir a palavra para criticá-lo) e sob forte pressão psicológica. E o resultado dessa equação será catastrófico. Quase como abrir uma caixa de pandora pessoal.
A fotografia em preto-e-branco de Jarin Blaschke é um show à parte e ajuda a construir o perfil atormentado de Wislow. E o surgimento de arquétipos isolados - a gaivota, a sereia, a tempestade que impede o resgate de chegar etc -, sempre antecipando o surgimento de algo ainda pior na vida do jovem faroleiro, faz com que a trama ganhe um certo caráter psicanalítico. E desde já deixo uma salva de palmas para a produtora A24 que vem chamando a minha atenção nos últimos anos com grandes realizações.
Há, é claro, o momento Um dia de fúria (sim, aquele filme hoje cult do diretor Joel Schumacher com o ator Michael Douglas na pele de um cidadão comum que surta após ficar horas preso num engarrafamento) em que o jovem Winslow, mesmo tentando a todo custo enfrentar seus demônios pessoais e suas condições de trabalho adversas, não resiste e sucumbe ao ódio no que ele possui de mais viril e visceral. E confesso que Pattinson, que sempre achei um ator mediano, me surpreendeu.
E é nesse exato momento que eu chego à minha reflexão principal sobre a obra cinematográfica em questão: O farol fala de forma soturna e nada convencional do eterno embate entre o homem e os obstáculos que ele cria durante sua jornada pela terra. E às vezes ele cria seus próprios fantasmas do armário, pois precisa de uma justificativa ou mecanismo de defesa que o leve até o dia seguinte e ao próximo e ao depois deste, tornando sua rotina um desafio praticamente interminável.
Assim na arte, assim na vida. Eu vi isso de perto, diante de meus olhos, em muitos indivíduos com quem trabalhei e sou grato por não ter sucumbido da mesma forma que eles, já que era um trabalho extremamente estressante e repetitivo.
P.S: (um pequeno detalhe que eu não pude deixar passar). O filme tem produção do brasileiro Rodrigo Teixeira. Interessante a carreira que esse moço vem fazendo no cinema internacional. Longa vida e sucesso a ele!
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