Eu vejo as artes plásticas desde garoto sob a ótica de dois grandes grupos: os promovedores de beleza e êxtase (o que não significa que eles tenham a única intenção de produzir o belo) e os provocadores. E este segundo grupo, confesso, sempre me atraiu mais. É o caso, por exemplo, de Andy Wahrol, Damien Hirst, Ai Weiwei... Todos eles têm algo em comum: conseguem me perturbar, me tirar do eixo desde o primeiro momento em que vislumbro seus trabalhos.
Entenderam até aqui? Pois bem: incluam também nessa lista o surrealista René Magritte. Desde o famoso quadro "Isto não é um cachimbo" esse senhor me incomoda (no bom sentido, é claro!). Trata-se de um artista de grandes e intrigantes ideias, que não se basta com o óbvio. E curioso: um homem simples, de vida pacata, que passou mais de quatro décadas casado com a mesma mulher, sem arroubos ou ousadias. Ou seja, uma vida sem graça.
E este mesmo homem criou um dos quadros mais controversos e discutidos de todo o mundo. Falo de O filho do homem.
Os fãs de artes plásticas e pintura em geral certamente sabem de que quadro eu falo. Um homem vestido com sobretudo cinza e chapéu coco - por sinal, uma marca registrada do pintor - e que tem seu rosto encoberto por uma maça verde, embora através dela consigamos ver seus olhos.
A tela foi criada como um autorretrato do próprio Magritte, mas ficar nesse senso comum não me parece o suficiente quando queremos analisar a obra. Detalhe: o próprio artista várias vezes disse que sua obra não tinha o afã de produzir um significado prático. Ela precisava ser vista por aquilo que ela era e nada mais. Contudo, não resisto às minhas viagens pessoais (e quase esquizofrênicas) que visam decifrar os meandros da mente e do trabalho dos grandes artistas.
E o principal aspecto que logo me chama a atenção é a presença da maçã e toda a correlação existente com a história bíblica de Adão e Eva. Mais: já li em vários ensaios sobre simbologia a relação estreita entre o objeto/ a fruta maçã e o conceito de pecado. A própria cidade de Nova York (ou "cidade do pecado", como muitos a conhecem) é chamada por seus próprios habitantes de Big Apple. E ver os olhos do filho do homem aparecendo por trás da maçã me remete à ideia de que ele poderia estar escrutinando os pecados do mundo.
Outro ponto interessante é que o próprio corpo do personagem bem como a silhueta apresentada na tela já aponta para aspectos desconcertantes. Falta um botão no casaco que ele veste, seu cotovelo esquerdo está nitidamente na posição errada... E associe a isso o "problema de consciência" que envolvia o autor - daí a dificuldade dele em pintar seu próprio retrato - e logo nos deparamos com uma figura disforme, meio dissociada da ideia de normalidade. E a mim cabem certas perguntas sem resposta aparente: seria o filho do homem o exato oposto de seu autor? Teria ele, mesmo sem querer, retratado o perfil do homem desse século XXI, um homem confuso, que parece não caber em suas próprias vestes e, no entanto, um curioso, um voyeur?
E nesse momento me repito. Não se esqueçam: é apenas a viagem pessoal de um admirador de arte amador que adora vasculhar as intenções e escolhas de artistas que o deixam intrigado. E nada mais.
Polêmicas à parte, mesmo envolto em mistério (certamente o grande tema da obra dele), Magritte tornou-se um fenômeno à sua maneira e inspirou as gerações posteriores. O próprio Andy Wahrol que citei num parágrafo acima foi extremamente influenciado por seu trabalho. Paul McCartney tirou daqui a ideia do logo da Apple, empresa que negocia os royalties dos Beatles até hoje. E hollywood certamente já satirizou a tela inúmeras vezes, em muitos projetos cinematográficos.
Ao fim, descartados todos os elementos de incompreensão plausíveis, o que se vê é um grande conflito entre o que o autor chamava de "visível oculto" e "visível presente". Enfim... Guardadas as devidas proporções e períodos históricos Magritte também entendia como poucos o quanto a sociedade é curiosa e gosta de bisbilhotar sobre aquilo que não consegue ver nitidamente. E há quem diga que ele, no fundo, criou uma nova forma de visibilidade.
Mais contemporâneo e autoral do que isso, impossível.
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