sábado, 6 de maio de 2023

O Brasil é isso aí.


É impressionante o fôlego e a capacidade de permanecer atual dentro do cinema brasileiro de Rio, 40 graus, longa do mestre Nelson Pereira dos Santos. Não foi à toa que o diretor virou imortal da ABL e tudo (para desgosto dos haters e críticos). São 68 anos de estrada mostrando um Rio de Janeiro (e, por conseguinte, um Brasil) que não somente não envelhecem como permanecem contraditórios em sua essência. 

Acompanhamos como uma crônica - o site IMDb se refere a ele como um "semi-documentário", o que não deixa de ter um certo fundo de razão - a saga de uma metrópole cheia de distorções e covardias as mais diversas, que (muitas vezes) se esconde atrás da fachada de seus cartões postais e clássicos da MPB. 

Os meninos que vendem amendoim na praia de Copacabana lotada e são vilipendiados em seus direitos básicos; os fanáticos pelo futebol que hiperlotam o Maracanã (não esse de hoje, desfigurado, mas o clássico, o dos tempos de glória) e se apegam doentiamente a seus ídolos; os interesses sórdidos da elite e da classe política que nada mais faz do que enganar o povo e viver de pose; os relacionamentos amorosos efêmeros, mal pensados, geridos no calor do momento, sem pensar; o samba nas favelas cariocas, sempre jogado para escanteio ou usado como desculpa para alavancar a cultura popular, etc...

Nelson Pereira conhecia seu país como poucos e mostrou ele sem desculpas ou álibis no cinema novo (movimento cinematográfico que hoje muitos querem execrar ou condenar) e embora este exemplar antecipe a vanguarda, já mostra correlações com o trabalho que ele mostraria nos anos seguintes.

Em Rio, 40 graus nada acontece por deslize, seja o atropelamento do menino favelado, seja o desfile da saudosa Portela no morro, numa época em que ela ainda era um dos epicentros do nosso carnaval. Isso tudo embalado ao som de "Eu sou o samba", clássico seminal do cantor Zé Kéti, que abrilhanta ainda mais a produção. 

Junto com Terra em transe (de Glauber Rocha), Iracema - uma transa transamazônica (de Jorge Bodanzki), Cabra marcado para morrer (de Eduardo Coutinho), Eles não usam black-tie (de Leon Hirszman) e Macunaíma (de Joaquim Pedro de Andrade) compõe uma fauna indispensável para entendermos - pelo menos na superfície - o que é o nosso audiovisual e, principalmente, nossa sociedade torta, hipócrita, perdida. E isso para ficar nos mais óbvios e consagrados.

Ao fim do registro impecável, o gosto amargo na boca e a vontade de perguntar "o que é esse tal de Brasil?". Pois é isso mesmo. Mesmo depois de seis décadas, AINDA é isso. Infelizmente. Mas ainda assim como é bom ver tudo isso retratado, sem rodeios, sem falsos moralismos, sem bundas e palavrões vazios. Apenas mais um dia nessa comédia dos erros que nunca chega ao fim.


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