Assim como na vida, o mundo do show business é complexo. Quem está de fora muitas vezes vende até a alma por uma remota possibilidade de acesso. E quem se consagrou dentro dele não admite, sob hipótese alguma, que outros venham roubar ou mesmo ofuscar o seu espaço, na maioria das vezes conquistado com muito suor e renúncia. E quando esses dois mundos se chocam, sai de baixo, pois somente os realmente fortes sobreviverão.
Chicago, 1927. Para um homem ou mulher negra como Ma Rainey (Viola Davis) conseguir celebritismo é preciso ter algo de muito bom ou especial para entregar ao público. E acreditem: ela tem e de sobra. Entretanto, ela precisou enfrentar o mundo dos homens brancos e suas eternas injustiças. Por isso, essa mulher forte enfrenta quem quer que seja de frente, sem papas na língua, nem fazendo concessões. Ela sabe que se quiser se manter onde está é preciso encarar o touro pelos chifres diariamente. E o principal: entender que nunca, nunca mesmo, ela terá descanso ou será aceita como uma igual.
Ela vai até um estúdio de gravação para produzir seu mais novo álbum e esperava que não fosse ter grandes problemas. A banda a acompanha faz tempo e sabe o seu lugar dentro do negócio. Contudo, como eu disse antes: o show business é complexo e cheio de novatos tentando chegar à fama. E ela esbarra no jovem - e convencido por natureza - trompetista Levee (Chadwick Boseman, em seu último trabalho nas telas de cinema), que tem como certo o seu sucesso vindouro. Resultado: um duelo de gerações recheado de preconceitos os mais diversos.
A voz suprema do blues, do diretor George C. Wolfe, é o filme que eu estava aguardando com ansiedade para este final do ano. Fala do ontem para as minorias e os massacrados sem se esquecer do que o problema se tornou com o passar das décadas. E expõe a nu toda a dor e ressentimento de um povo (que, cá entre nós, tem todo o direito de ser ressentido do jeito que é, embora a classe privilegiada não tenha a capacidade de entender isso!).
Quando Levee esmiuça seu ponto de vista moderno para os outros músicos da banda, a chamada velha guarda, satisfeita com as míseras conquistas que realizou, começa um grande debate, feroz em suas intenções, sobre demagogia, religião, poder, sucesso e hierarquia. Quem manda e quem obedece, quem tem talento e quem só serve para acompanhar os outros, quem comanda o show e quem deve obedecer, etc etc etc. Há inclusive um monólogo extremamente questionador sobre a fé que vale por, pelo menos, um terço do longa.
A história, que é baseada numa peça teatral de August Wilson, me ganhou logo cara nessa adaptação cinematográfica por sua caracterização irretocável, os figurinos e o clima da época. Para cinéfilos que adoram filmes históricos, verão na película um prato cheio. Porém, trata-se de uma narrativa de embates, logo de interpretações ora fortes ora precisas. E tirando uma participação feminina dispensável, achei o elenco coeso e ciente do que queria desde o primeiro fotograma. Prevejo algumas indicações ao Oscar.
Detalhe que eu quase ia esquecendo: no quesito musical, o filme também não deixa a desejar, embora (eu confesso) quisesse ver um pouco mais. Mas não se trata de um musical estilo Broadway, logo volto à realidade para acompanhar as entrelinhas da história.
E ao passar dos créditos, percebi estar diante de um grande ensaio sobre os restos da sociedade.
Você, neste exato momento, deve estar pensando em casa: "o que ele quis dizer com isso?". A voz suprema do blues se debruça de forma inteligente sobre a vida miserável dos eternos excluídos da maior nação do planeta. Aqueles que só têm utilidade em época de eleição (algo que nós, brasileiros, conhecemos bem) e durante o resto do ano precisam se satisfazer com o que têm. E mesmo quando vencem na vida, por menor que seja, não passam de meros bobos da corte, "aqueles que entretém os verdadeiros seres humanos, os homens de bem".
O longa de Wolfe me fez pensar em muita coisa boa que eu vi nessa linha ao longo da minha vida cinéfila. Falo de Bird, de Clint Eastwood; da minissérie Raízes (de 1977); 12 anos de escravidão, de Steve McQueen e o eterno Malcolm X, de Spike Lee. E isso é realmente muito bom. Por outro lado, também nos mostra o quanto continuamos involuindo como sociedade, principalmente: como raça humana. E isso é realmente muito triste.
E só por essa contradição já vale a pena dar uma fuçada atrás dessa produção da Netflix (É... Outra vez ela!).
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