"Estica aqui, aumenta ali, corrige acolá, diminui um pouquinho aquela curva do...". Sim, passamos de seres humanos à objetos que precisam ser anatomicamente consertados ou remendados o tempo todo. Em outras palavras: nos tornamos reféns do bisturi, artefato cada dia mais relevante e imprescindível nesse século XXI baseado em corpos, poses e opiniões contraditórias.
E a pergunta que não me sai da mente é: o que sobra depois disso? Resposta sincera: praticamente nada. Resposta oficial: um mundo de possibilidades (quais, exatamente, já é assunto para outro texto, pois eu preciso pensar mais a respeito). Contudo, a tecnologia não para, avança a galope e promete um mundo no futuro ainda mais tenebroso.
E é exatamente desse mundo tenebroso que o diretor David Cronenberg fala no mórbido, porém necessário, Crimes do futuro.
Cronenberg é um cineasta ligado, em sua origem, ao universo da maquiagem e do body horror. E fez disso um talento raro, para pouquíssimos na sétima arte (que o digam seus clássicos A mosca, Videodrome e Gêmeos - mórbida semelhança). Porém, nos últimos anos atrás das câmeras, vinha se dedicando a outros territórios, chegando a adaptar uma HQ - Marcas da Violência - e se propondo a falar de Freud, Jung, máfia russa e até mesmo as consequências do Occupy Wall Street no mundo.
Mas, saudoso de seus primeiros anos na direção, se reinventa e nos apresenta um retrato sórdido (digo mais: sarcástico) e por vezes doentio do mundo contemporâneo e dos exageros à vaidade.
Seu protagonista, Saul Tenser (Viggo Mortensen, parceiro recorrente nos últimos projetos) é aquilo que podemos chamar de "um artista do horror pós-moderno". Realiza cirurgias complicadas e as transforma num show business macabro que enche os olhos dos admiradores que assistem suas performances. Sua alma gêmea, Caprice (Léa Seydoux) é, em tese, a única capaz de seguí-lo até o inferno, se preciso. E eu digo em tese, pois há mais gente querendo esse lugar.
Lang Dotrice (Scott Speedman) e Timlin (Kristen Stewart) também veneram o talento deste showman insano a ponto de lhe propor as mais nefandas ousadias. A questão mesmo é: será que ele topará? Saul parece tão devotado à sua própria vaidade e talento que todo o resto parece banal diante de seus olhos. Nem mesmo o elogio ("a cirurgia é o novo sexo") proferido por Timlin é capaz de quebrar sua armadura de empoderado. E aqui começa justamente o legado do longa.
Cronenberg desenha bem uma sociedade afeita ao efêmero e à estrelismos os mais diversos, na qual o mais importante é ser venerado pelos demais e comer plástico é sinônimo de avanço social. Muitos espectadores chatos talvez digam de forma leviana: "isso é papo de filme; na realidade não é bem assim, não!". Entretanto, quando me dou conta do que andam chamando de artista, gastronomia e show business hoje em dia, eu chego à conclusão de que, na verdade, não tem nada de ficção aqui. Não mesmo.
Se preparem, adeptos e fãs de longa data do diretor, para as deformações e máquinas exóticas costumeiras do seu cinema presentes aqui (e nesse sentido, o filme me lembrou muito de Existenz, outra bola fora da curva dentro da sua carreira).
Ao fim, enquanto os créditos correm após a satisfação estampada no rosto do protagonista ao provar plastic food pela primeira vez, me pego num sentimento dúbio entre o niilismo e o apavoramento com os dias que ainda virão. Não é de hoje que a sociedade mundial vem me assombrando com suas escolhas equivocadas e, porque não dizer também, monstruosas. Da destruição da arte para favorecer as NFTs à crise dos refugiados, passando pela proposta de controle populacional ao preço que for, caminhamos para um abismo às gargalhadas, achando tudo de mais terrível extremamente natural.
E acreditem: isso é tudo o que o mundo não está sendo nas últimas décadas, pelo menos. E em meio a tanta negatividade travestida de exibicionismo, só me resta agradecer ao diretor - mestre em descortinar ao longo da carreira o amargor do que chamamos de natural impunemente - por mais essa peça rara dentro do seu currículo cinematográfico. Que venha o próximo!
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