quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Saramago, 100 anos


O escritor e poeta português Gonçalo M. Tavares - autor de Short Movies e Jerusalém - disse em um dos seus textos que "a melhor maneira de respeitar um autor é fazer alguma coisa com o que ele escreveu". E eu sempre tentei fazer exatamente isso com Machado de Assis, nosso maior autor. É muito fácil chamá-lo de gênio, mas sempre o tornamos inacessível para grande parte do público leitor brasileiro (e eu sempre tentei apresentá-lo aos mais jovens da forma mais palatável possível). 

Contudo, é preciso também deixar claro aqui. A mesma frase - ou aforismo - cai como uma luva para explicar o mestre José Samarago, que hoje comemora com toda justiça o seu centenário. E mais: não acredito que conseguimos até hoje dimensionar a grandeza deste homem, único vencedor do Prêmio Nobel de literatura em língua portuguesa (em 1998).

Saramago, o garoto nascido na província do Ribatejo, filho de trabalhadores rurais, que se formou como serralheiro mecânico pois a família não tinha como pagar sua universidade, mesmo depois de publicar em 1947 o seu primeiro livro, Terra do pecado, não fazia ideia da reviravolta que sua vida tomaria anos mais tarde. Inclusive, reza a lenda, que sua trajetória começou a tomar um novo rumo quando foi demitido do jornal onde trabalhava, o Diário de Lisboa, durante a Revolução dos cravos. 

Sua obra literária é carregada de um realismo profundo; repleta de elementos sociais e políticos, bem como uma crítica religiosa e anticlerical ferrenha (o que o levou, muitos vezes, a ser excomungado pela crítica literária). Mestre na arte da paródia - fruto da intertextualidade que seus livros mantêm com autores clássicos como Camões, Fernando Pessoa, Antônio Vieira e Almeida Garrett -, também dialogava com fragmentos do chamado realismo mágico, tornando seu trabalho uma alegoria fascinante.

Outra marca forte em seu trabalho era a maneira bastante particular com que tratava a linguagem em seus textos. Nada de aspas, travessões, dois pontos, ponto e vírgula... Apenas vírgulas pontuais. E um detalhe: sempre lutou junto às editoras para que seus livros viessem escritos no português de Portugal e não na variante brasileira. Sim, corajoso o moço! E bem fez ele, pois lutou até o fim por sua língua e nação. 

Dentre os livros que publicou nenhum obteve mais atenção da mídia do que o polêmico O evangelho segundo Jesus Cristo (que chegou a ganhar uma montagem teatral aqui no Brasil). Nele, mostrou um Jesus mais humano, menos divino, repleto de defeitos morais e apaixonado por Maria Madalena, o que levou os religiosos mais extremos à fúria. Já O ensaio sobre a cegueira (que ganhou, em 2008, adaptação para o cinema do diretor Fernando Meirelles) é certamente seu exemplar mais famoso, aqui e no mundo. E tem motivos de folga.

Perdi as contas de quantas vezes reli a história da sociedade que acorda completamente cega após a passagem da chamada "treva branca" e vê o mundo entrar num completo caos. Recomendo. Leiam o livro e, se possível, vejam o filme, que também é brilhante.

Outras obras publicadas que, a meu ver, também merecem o tempo do leitor desta humilde homenagem são: Memorial do Convento (um clássico que eu li ainda no ensino médio), A jangada de pedra (que também ganhou versão na tela grande, pelas mãos do diretor George Sluizer em 2002), a magistral série de diários Cadernos de Lanzarote (publicados entre 1994 e 1998, e que expõem o autor a nu), O homem duplicado (também adaptado em 2014, por Denis Villeneuve) e os mais recentes, mas não menos interessantes, As intermitências da morte, A viagem do elefante e Caim.

Entretanto, procurem a fundo e encontrarão também contos, poemas e até uma peça teatral criada por ele. Saramago era eclético e metódico em tudo o que fazia. E não à toa dizia que "a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar" e "eu suponho que tenho todos os direitos do mundo de escrever sobre tudo aquilo que eu entender". Ele tornou seu trabalho parte dessa nova realidade. 

Em 18 de junho de 2010 nos deixou, mas sua Fundação por aí continua, agora administrada pela esposa, Pilar del Rio. E não somente ela, mas um legado impressionante e uma cultura ímpar (o que me faz pensar a todo momento qual a pinimba que o Nobel tem com o nosso idioma. Já tivemos tantos autores formidáveis. É recalque, isso? Só pode!)

Faltou mencionar algo? Claro que sim. Um autor dessa grandeza... Sempre falta. Mas eu que não sou louco de falar demais e acabar entregando o que não devo. Melhor encerrar com o meu mais profundo obrigado. Por tudo. 

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