Nunca me esqueço de minha irmã, ainda pequena, assistindo o desenho O fantástico mundo de Bobby no SBT e de seus olhinhos brilhando, vidrados na tela da televisão. Bobby era um menino extremamente imaginativo, que transformava a realidade e o cotidiano familiar numa aventura de proporções inimagináveis. Ele era como Calvin das tirinhas de jornal Calvin e Haroldo, capaz de transformar o simples e o corriqueiro numa aventura intergaláctica, numa reunião dos cavaleiros da távola redonda ou mesmo num passeio pela pré-história. Bastava a sua mente assim o desejar.
Pois bem: em tempos de quarentena por conta do Covid-19 muita gente na internet disponibilizou um pouco de tudo em termos de cultura: filmes completos, peças de teatro, espetáculos de circo, livos em pdf ou epub e até mesmo graphic novels as mais diversas. Eu mesmo acabei por baixar umas 15, dentre elas uma versão extremamente mágica de O diário de Anne Frank. E é preciso dizer logo de cara aos meus leitores: se algum de vocês não conhece ou nunca ouviu falar de Anne Frank, na boa... Você(s) tem sérios problemas!
O álbum, criado pela dupla Ari Folman e David Polonsky, parte do diário original de Anne (há centenas de passagens do livro presentes aqui) para construir uma narrativa que flerta com o mágico e o surrealismo. E este é, com certeza, o maior legado da obra. Digo isso porque seria chover no molhado simplesmente transpor para outro formato uma história que já é consagrada por si só. E de repetições o mercado cultural já anda cheio.
Annelies Marie Frank tem apenas 13 anos e já uma garota diferente da grande maioria das garotas de sua idade. Ela é praticamente uma precursora desse feminismo que anda em voga nos dias de hoje e se sente deslocada de praticamente tudo. Não quer se envolver amorosamente - embora nutra uma paixão platônica pelo jovem Peter Schiff - e não acredita 100% nas suas amizades de colégio. Do que gosta mesmo é de ler (e isso faz dela, por si só, uma pessoa esquisita, quase uma ovelha negra dentro da própria família).
Sua única e verdadeira amizade é Kitty, o diário que ganha de presente de aniversário pelos seus 13 anos e com ele divide o seu melhor, realiza seus maiores desabafos e confissões. Praticamente o transforma num amigo imaginário. Porém, com a chegada do nazismo à sua vida e a de seus pais em 1942, tudo muda e a família precisa fugir (para a Holanda) e depois se esconder num anexo do prédio onde seu pai trabalhava, E é nesse momento que a história se transforma numa espécie de "o mundo segundo Anne".
Como pertence a uma família judia, Anne, seus familiares e os amigos com quem dividirá abrigo, se tornam aqueles que não podem nada, que não têm direito a absolutamente coisa nenhuma. Não podem nadar na mesma piscina que os demais, não podem andar na rua depois do anoitecer, nem andar de bicicleta, e os livros que eram escritos por eles eram queimados em praça pública. Em suma: tornam-se párias para o restante da sociedade.
Como consolo resta a Anne o mundo particular o qual cria para sobreviver e as "conversas com o diário", verdadeiro amigo do peito nessas horas.
A paleta de cores proposta por David Polonsky é encantadora e inebriante. Ele brinca com as cores e sabe usá-las a serviço da imaginação da garota. E haja imaginação! Acredito que a ideia de buscar referências em telas famosas como O grito, de Edvard Munch; O retrato de Adele Bloch-Bauer, de Gustav Klimt e O nascimento da vênus, de Sandro Botticelli, bem como a lembrança à uma fala de Apocalipse now, de Francis Ford Coppola e a menção às pirâmides egípcias tenha partido do roteirista Ari Folman. E o resultado dessa combinação - que vem a calhar - é um caderno de notas cheio de requintes e muito bom gosto.
É possível para o leitor ir além do discurso amargo do holocausto (o que não faz da graphic novel um instrumento vazio ou mesmo alienado. Pelo contrário). Anne narra as agruras da guerra - a falta de comida, o dia a dia das pessoas que vão para os campos de concentração, pessoas vendendo a localização de judeus, os vizinhos que vê da janela sendo presos, as visitas surpresa dos soldados da SS para vistoriar a casa à procura de foragidos, etc... - e nem por isso deixa de preencher sua vida com "ilusões satisfatórias". Afinal de contas, trata-se de uma adolescente. Mas, bem no fundo, ela também entende que precisa amadurecer rápido, que sua juventude foi roubada pelo regime.
Logo, quanto antes entender o que está acontecendo, mais cedo ela se sentirá apta a enfrentar toda essa situação (mesmo que entre uma lágrima e outra).
Ao final das mais de 200 páginas meus olhos marejam de lágrimas e vejo no posfácio do álbum que o nome de Anne Frank - através de sua fundação - está mais vivo do que nunca. E é bom que esteja. Os leitores certamente agradecem. E que o mercado quadrinístico transponha outras obras célebres para este formato também.
P.S: A cada dia dessa quarentena que vem dando o que falar no país fico mais orgulhoso da formação cultural que venho construindo. Quem diria que o isolamento social propiciado por um vírus iria me proporcionar tudo isso!
P.S 2: uma semana depois de escrever este texto vejo matéria da Folha de São Paulo em que videobloggers estão postando vídeos com versões contemporâneas da história de Anne Frank em seu esconderijo. Só mesmo personagens imortais (como ela) conseguem tal feito!
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