sábado, 4 de abril de 2020

O quarto reich sempre esteve por aqui


Os puristas estudiosos de história volta e meia encrespam com certas liberdades poéticas presentes em adaptações cinematográficas e televisivas de momentos históricos específicos. E no caso da Segunda Guerra Mundial e o holocausto em particular, eles vão além, chegando a ficar de cabelos em pé. Na boa... O problema é única e exclusivamente deles. E, além disso, a sétima arte nunca se viu engessada unicamente a discursos literários e acadêmicos. Mais: ela se permite ousar toda vez que a situação se apresente. 

Logo, foi com um enorme prazer que assisti a primeira temporada de Hunters, série de tv da Amazon criada por David Weil, e constatei se tratar de uma grande e divertida ousadia. 

Hunters conta a história do jovem judeu Jonah Heidelbaum (Logan Lerman, da franquia Percy Jackson), que vê a avó ser assassinada diante de seus olhos, sem que ele esboce qualquer reação, e descobre que ela pertencia a um grupo de caçadores de nazistas, capitaneado pelo milionário Meyer Offerman (Al Pacino, em seu regresso à tv depois de 17 anos). 

Eu sei... Parece simplista resumir a série num raso parágrafo de cinco linhas. E é. Contudo, Hunters está tão cheia de desdobramentos e reviravoltas que é difícil, à primeira vista, resumi-la em poucas palavras. Trata-se, no final das contas, de um grande ensaio sobre a América contemporânea - leia-se: pós eleição de Donald Trump - e o fascismo que nunca deixou de estar entre nós, embora a segunda guerra já tenha acabado há mais de 70 anos. E olha que a narrativa televisiva se passa em 1977!

O grupo que acompanha Jonah e Meyer é bastante eclético e reflete bem a estereotipia que convive a duras penas na terra do Tio Sam. Há o ator decadente, que sobrevive dos poucos fãs que ainda se lembram dos tempos em que ele era uma grande promessa de hollywood; uma versão um pouco mais engajada da musa da Blaxploitation, Cleópatra Jones; um ex-soldado da guerra do vietnã, ainda traumatizado pelos horrores que viu e perpetrou durante o conflito e até mesmo uma ex-noviça revoltada, bem na linha Grindhouse de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. 

E não bastasse tudo isso os produtores da série - dentre eles, o fenômeno da atualidade, Jordan Peele - ainda debocham de tudo o que podem e não perdem a chance de usar referências do universo quadrinhos e da cultura pop em geral. Fãs da Marvel, deem uma chance a esse programa! Vocês não vão se arrepender!

Para aqueles que esperam algo mais visceral e contundente, na linha A queda: as últimas horas de Hitler ou A lista de Schindler, procurem outro formato. O que está em jogo aqui é uma grande fabulação, um desejo de zoar também com a própria história passada (e os conservadores vão reclamar, como sempre!). Já se você curtiu a maneira como Tarantino recontou a jornada de Hilter em Bastardos inglórios, assistam até o último episódio pois o desfecho é avassalador.

Desde que li a respeito do projeto pela primeira vez, fiquei interessado na premissa (e, lógico, pela presença de Pacino, o eterno Michael Corleone) e ansioso pela estreia. E ratifico: Hunters é tudo aquilo que eu esperava. Contudo, é preciso ter mente aberta ao assisti-lo, já que a série não se prende a normatismos e discursos literais. Como disse no primeiro parágrafo, "ela se permite ousar". E ousadia é tudo o que o cinema americano não tem feito nos últimos anos. Por isso vem perdendo espaço dia a dia para a televisão. 

O quarto reich proposto pela série sempre esteve por aqui. Não é algo que simplesmente desapareceu por conta da derrota dos nazistas. Não, meus caros leitores! O fascismo sempre se esconde e procura uma nova oportunidade de tomar o poder no futuro. E assim será também depois que a nossa geração não estiver mais por aqui, ad aeternum.

Logo, a decisão de ler essa história de maneira emburrada, enfadonha, resmungando de tudo o tempo todo ou sabendo rir da própria desgraça (e aprendendo com isso) é só sua. Então, pelo amor de Deus, escolham com sabedoria. 

A vida, vocês sabem, é uma só e nunca dura o tempo que nós gostaríamos que durasse... 

Sem comentários:

Enviar um comentário