domingo, 19 de abril de 2020

A seleção natural


É... Não tá fácil, não! Na verdade está piorando...

Na TV, senadores confabulam (leia-se: guerreiam com unhas e dentes), sem chegar a um acordo, pelo chamado contrato verde-e-amarelo que, na prática, exclui diversos direitos trabalhistas outrora adquiridos. É uma terra de lobos comendo lobos a política partidária. Enquanto isso, a sociedade definha entre um aviso de morte por covid-19 e outro. É o agora, atingindo nossos olhos e consciências como um dardo envenenado. 

E mediante toda essa insensatez e falta de escrúpulos achei extremamente enriquecedor - há quem certamente me chamará de maluco - assistir ao longa-metragem da Netflix O poço, do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. E digo isso porque, mais do que nunca, precisamos entender (mesmo que vendo na marra) o mundo caótico que ajudamos a construir. 

O poço traz uma plataforma (e nesse sentido, o título em inglês mostrado no IMDb faz bem mais sentido para mim) onde diferentes seres humanos, que se cadastraram para participar dessa suposta experiência, se intercalam, uma dupla por andar. Detalhe: o período em que cada dupla permanece no mesmo andar é de um mês. Após isso, eles vão para um outro, escolhido pelos administradores aleatoriamente. Parece simples de entender, mas o que realmente interessa não é o local, mas a mentalidade de seus moradores. 

E é difícil classificar o novato Goreng (Ivan Massagué) como um protagonista desta trama. Pelo contrário. Ele me parece mais uma engrenagem de um indústria que trabalha com produção em série, como em Tempos Modernos, do sempre genial Charles Chaplin. 

Aliás, qualquer correlação feita aqui com o mercado de trabalho de forma geral é muito bem-vinda. O filme expõe de forma lúcida (sem perder o seu percentual de enigmático) o eterno regime de castas no qual estamos amordaçados desde que o mundo é mundo. 

Há de tudo no poço: homens e mulheres desesperançados por natureza, reféns de seu próprio niilismo; uma mãe desesperada que procura seu filho perdido no meio dos moradores; um fanático religioso que acredita piamente que somente Deus poderá tirá-lo daquele lugar miserável; canibais contemporâneos à espera de que qualquer pessoa morra a qualquer momento para que ele(a) não morra de fome; etc...

Quase ia me esquecendo: o elevador que traz a comida diária para os moradores do poço é o retrato do que existe de mais vil (e não menos verdadeiro) no que conhecemos como sociedade contemporânea. Ali se vê claramente a mentalidade egoísta do homem, incapaz de enxergar além de seu próprio umbigo e convicções. Quem comeu, comeu; quem não comeu, que reze, peça a Deus por dias melhores. 

Neste momento a trama ganha uma conotação quase darwiniana, pois a seleção natural que se constrói diante de nossos olhos é sórdida, diria mesmo macabra (entendo perfeitamente os espectadores que classificam o longa dentro do gênero terror). Trata-se de uma luta inumana por aquele que deveria ser um direito básico universal garantido ao homem: o de sobreviver. E, no entanto, percebemos que nossa existência aqui não tem nada de garantido. Não há certezas no mundo dos homens. Apenas possibilidades e a maioria delas injustas.

Enquanto a sociedade procura por heróis de plástico e líderes tendenciosos a quem possam seguir inutilmente, como cachorrinhos de madame, o mundo real - aquele que nunca quisemos encarar de fato, frente a frente, pois é mais fácil ser covarde ou demagogo - nos coloca uns contra os outros e ainda disponibiliza as armas, para que nos matemos mais rápidos. 

Eu já prevejo alguns leitores entediantes e repetitivos dizendo: "que crítico maquiavélico esse rapaz! não apresentou nenhuma notícia feliz ou sinal de esperança para o futuro" e eles podem se manifestar à vontade. Mas me parece à primeira vista impossível uma solução para o mundo enquanto empurrarmos o lado duro da vida para debaixo do tapete. O contrário disso sempre me soou como hipocrisia e dela, que conheço de cor e salteado, eu já ando cheio. Mesmo.

P.S: desde Mãe!, de Darren Aronofsky, um filme não mexia tanto com a minha cabeça como esse aqui. E a minha cabeça precisava de uma sacudida forte.

Sem comentários:

Enviar um comentário