quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

R.I.P Ney Latorraca


Eu não sei se chamo de ironia ou de bizarro, mas... a vida é definitivamente um sopro. Nos acostumamos com a presença das pessoas que marcaram nossa vida e nossa formação cultural, até que num istmo de segundo nos damos conta de que elas não estão mais entre nós, se foram. Zapeio entre clipes musicais no you tube e, eis que de repente, vislumbro um vídeo, na verdade uma conversa, entre os atores Stepan Nercessian e Maitê Proença. Stepan pergunta por onde anda Ney Latorraca ("ele está sumido", diz ele). Maitê responde que Ney anda recluso, que cansou de ser o palhaço da turma, que prefere ficar em casa, em paz.

Corta para: eu, hoje, logo cedo, sabendo da notícia da morte de Ney Latorraca, aos 80 anos. Que tristeza! Nem tivemos a honra de vê-lo, pelo menos mais uma vez, no palco ou na tela. 

Difícil - na verdade, quase impossível - lembrar de Ney e não associá-lo automaticamente ao seu personagem Barbosa, do antigo programa humorístico Tv pirata. Barbosa, além de engraçadíssimo e de pouquíssimas palavras, foi fruto de uma época em que a tv era mais corajosa, ousada, sem medo de enfrentar moralismos e falsos conservadores de meia tigela. 

Já os fãs do bom teatro certamente preferirão lembrar dele, ao lado do também magistral Marco Nanini, em O mistério de Irma Vap, um fenômeno de audiência da nossa dramaturgia e, por muitos anos, detentor de recordes de bilheteria. Quem não teve a honra de vê-los no palco não faz a menor ideia do que perdeu. 

Em Vamp, uma telenovela que rompeu com padrões da tv nacional nos anos 1990 ele era o impagável vampiro Vlad Polansk, que infernizava a sedutora rockstar Natasha (Claudia Ohana), a quem via como sua musa eterna. Lembro até de uma sátira que ele fez ao clipe Thriller, de Michael Jackson, hilária! Procurem na internet, deve ser fácil de achar. 

Ele também foi o Arandir de O beijo no asfalto, longa-metragem de Bruno Barreto adaptado da peça clássica do dramaturgo Nelson Rodrigues, e protagonizou junto com Tarcísio Meira - eterno galã da Globo - uma das cenas de beijo mais polêmicas (e mais corajosas) da história do nosso audiovisual. 

Também não consigo, não importa o quanto eu tente, me esquecer dele como Ernesto Gattai na minissérie Anarquistas, graças a Deus (baseado em livro homônimo da escritora Zélia Gattai, esposa de Jorge Amado), do serelepe Esmeraldo de Memórias de um gigolô, adaptado de Marcos Rey, um autor que eu adorava ler e reler na minha adolescência por causa da coleção vaga-lume da Editora Ática - num trio delicioso com Bruna Lombardi e o então galã Lauro Corona - e, finalmente, do Alexandre no especial de fim de ano que depois foi remontado como telefilme Alexandre e outros heróis, inspirado no universo de Graciliano Ramos (para mim, seu último grande personagem na telinha). 

Somem a tudo isso ainda trabalhos como as séries de tv Plantão de polícia e Beto Rockfeller; os longas Ele, o boto (de Walter Lima Jr.), Ópera do malandro (de Ruy Guerra) e Carlota Joaquina, princesa do Brazil (de Carla Camurati); as minisséries A casa das 7 mulheres e o eterno clássico Grande sertão: veredas, e certamente os apaixonados por nostalgia terão muita coisa para relembrar de sua rica carreira. E um aviso aos desavisados sobre o ator, que sequer conhecem seu trabalho: estejam aptos a serem surpreendidos a todo momento. Latorraca fazia um tipo de humor cada vez mais raro em nosso país. E isso era pra poucos (e, claro, gênios).

Fica com Deus, meu caro! Você era único e com certeza é mais um que vai fazer muita falta no mundo das artes nesse século XXI cada vez mais sem referenciais...  


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