terça-feira, 8 de outubro de 2024

25 anos sem o engenheiro das palavras


Eu me lembro com exatidão das três vezes em que li o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. E principalmente: do prazer inenarrável que foi esmiuçar aquela obra-prima. Impregnado de forte crítica social, mas sem perder sua capacidade de ser nostálgico e mostrar um nordeste eterno, João Cabral nos entregou - assim como Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas - um microcosmos ácido sobre o Brasil. 

O triste nisso tudo? Lá se vão duas décadas e meia em que nunca mais veremos esse mestre em ação na poesia brasileira. E as novas gerações não fazem a menor ideia do que significa não ter alguém dessa envergadura para ler nos momentos de lazer!

João Cabral fez parte da geração de 45 do modernismo brasileiro, um período em que os escritores estavam mais preocupados com a palavra e a forma do que com o conteúdo (o que não significa - de forma alguma - que suas narrativas fossem menos emocionantes ou fortes ou suas sensibilidades menos poéticos. Longe disso!). Vem daí, inclusive, o apelido que ganhou de engenheiro das palavras. 

Ler João Cabral, em alguns momentos, é como adentrar uma grande fenda no espaço-tempo, uma terra particular onde mesmo o senso comum e o cotidiano são coadjuvantes quando colocados lado a lado com suas ideias e impressões sobre o país e o resto do mundo. 

Se tiverem tempo (está cada vez mais difícil, pelo menos para mim, encontrar tempo disponível para ler) conheçam O cão sem plumas, O rio, Quaderna, A educação pela pedra, Auto do frade e Sevilha andando. E isso só para começar os trabalhos! Aposto o dinheiro que for como irão ficar encantados e não desgrudarão mais de sua obra. Eu mesmo volta e meia o releio, para não perder o costume. 

Ao invés do lirismo, Cabral acreditava em conceitos como objetividade, concretude, racionalidade... E transformou seu projeto literário naquilo que ficou conhecido como poesia profunda, baseada na realidade exterior. Ele passou a vida reclamando de uma enxaqueca que o perseguia e que, no fundo, era uma forma de mantê-lo sempre atento, ligado aos fatos, e não displicente na forma como conduzia seu trabalho. 

É definitivamente uma pena sabermos que não podemos mais contar com uma força da natureza dessas produzindo literatura brasileira de alto nível. É mais um daqueles casos em que você se pergunta: "onde estavam os votantes do nobel de literatura que não reconheceram esse gênio anos atrás?". 

Fica em paz, João! Seus leitores irão relê-lo até o fim dos tempos.  


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