sábado, 30 de dezembro de 2023

Terminando o ano nostalgicamente


Eu já fui um viciado em tirinhas de jornal. Do tipo que lê até os jornais do vizinho escondidos antes de ir pra escola só para não perder os meus personagens favoritos (e eram vários: Garfield; Urbano, o aposentado; Recruta zero; Fantasma; etc). 

O tempo passou, as tirinhas ganharam a companhia luxuosa das graphic novels de Will Eisner e as edições da Heavy Metal e eu não parei mais de acompanhar o fascinante mundo da nona arte, com suas criações apaixonantes, mas por vezes também caóticas, fora do tom ou de qualquer tipo de maniqueísmo. 

Quando li Calvin e Haroldo a primeira vez eu já era um garoto fascinado por crianças fora da bolha e, principalmente, Peanuts (aqui no Brasil mais conhecido como A turma do Charlie Brown ou pelo desenho - exibido no SBT - Snoopy) e achei curioso aquele menino loiro, cheio de sonhos e planos mirabolantes ao lado do tigre de pelúcia/ amigo imaginário nas horas vagas. Resultado: viciei. 

E hoje, passadas décadas, escolho entre minhas leituras de fim de ano o volume III da série de Bill Watterson publicada pela Editora Conrad, de nome Tem alguma coisa babando embaixo da cama. E em poucas palavras: nostalgia simplesmente não resume o que eu senti ao terminar o álbum.

Mais: cheguei a me ver novamente com 12, 13, 14 anos, sentado na escadaria do prédio onde eu morava devorando as historinhas. 

Calvin continua tornando a vida dos pais uma montanha-russa de sentimentos enquanto se propõe às maiores peripécias e aventuras. Seja um simples papel numa peça teatral na escola, abrir os presentes no dia de natal ou mesmo brincar na lama com Haroldo, tudo é motivo para que esse garoto extremamente imaginativo crie um mundo particular que supere a realidade em vários níveis. 

Susie, a colega de classe que não esconde uma queda por ele; a professora (a original ou a substituta) que não aguenta as peraltices do menino endiabrado; os vizinhos da rua; ninguém é capaz de classificar Calvin em poucas palavras. Ele é um dínamo capaz de virar o próprio mundo - e que dizer do resto! - de ponta a cabeça só para provar suas teorias malucas. 

E ainda há tempo para as personagens que inventa (e reinventa) de tempos em tempos, como Spaceman Spiff e sua versão Tiranossauro Rex, enlouquecendo a rotina de quem estiver ao seu redor. 

Termino 2023 nostalgicamente e também perplexo em muitos sentidos. Não esperava - por conta dos últimos anos aqui no país: pandemia, crise internacional, nosso governo federal anterior, etc - terminar o ano dando margem a algo tão divertido e inspirador. Espero que essa maré positiva continue ano que vem. Será muito bem-vinda! 

Aos que não conhecem o álbum (e a coleção de tiras da Conrad), recomendo de olhos fechados.


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Pobre Graciliano!


Fui surpreendido hoje com a notícia (não tão bem-vinda assim) de que a obra do escritor alagoano Graciliano Ramos entrará em domínio público em janeiro de 2024, podendo ser editada por qualquer pessoa além de ganhar "desdobramentos criativos" - esta última parte o meu maior medo como leitor da magnífica literatura do velho Graça. 

Algumas editoras, inclusive, já se mobilizam mostrando nas redes sociais edições caprichadas dos futuros lançamentos. Cheguei até mesmo a ler comentários de leitores dizendo que "quem tiver cabeça e relançar as obras com boa fortuna crítica, elaborada por grandes ensaístas e intelectuais, levará vantagem nessa disputa". 

Portanto, aguardemos para breve relançamentos de livros seminais - e extraordinários - como Vidas secas, Memórias do cárcere, Angústia, São Bernardo e tantos outros. 

Meu medo (como mencionei no parágrafo inicial) é aquele que os bons amantes da literatura brasileira já conhecem de cor e salteado: o fato de não sermos um país de leitores e, muitas vezes, nos contentarmos com versões resumidas, adulteradas, transformadas ou mesmo suavizadas (em tempos de censura à arte) de nossa produção cultural. 

Conheço muita gente que diz conhecer nossa literatura e, no entanto, só "leu" versões quadrinizadas e viu adaptações deturpadas para o cinema. Nada contra as HQs e à sétima arte, sou até suspeito para falar de ambas, grande admirador que sou delas, mas... Nada supera a obra original.

Fico imaginando os tais "desdobramentos criativos" nas mãos de pessoas que vivem flertando com o tendencioso, desmentindo ou negando quase tudo. Pobre Graciliano! Que usem de sabedoria ao trabalharem com o seu legado!

Já disse isso antes, em algum momento deste blog (desçam a barra de rolagem os que tiverem curiosidade...): sou muito mais fã de Graciliano Ramos do que a Academia Brasileira de Letras é de Machado de Assis e, sim, eu sei que um comentário desses já rende polêmica para um ano inteiro. Mas o que posso fazer? É a mais pura verdade! 

E por isso mesmo tenho receio de ver no que possam transformar a obra de um gênio dessa lavra. Oremos - tanto este que vos escreve como os fãs de Graciliano em todo o território nacional - para que não esculhambem ou diminuam a importância de seu trabalho. Seria o mínimo de sensatez. O problema: o Brasil nunca soube, de fato, ser sensato. Ainda mais quando o assunto é cultura, arte, entretenimento. 

Que a esculhambação, a piada, o escracho e a falta de tato ou maturidade não vençam essa batalha. Tanto o autor como nossa literatura de forma geral não merecem uma desonra dessas...


domingo, 24 de dezembro de 2023

A criatura voltou, graças a Deus!


Impossibilitado pelo meu computador, que chegou ao fim da sua jornada (me obrigando a comprar outro!), acabei não comentando aqui Godzilla minus one, do diretor Takashi Yamazaki. 

Em poucas e justas palavras: "deslumbrante" e "a grande surpresa do ano".

Nos últimos anos - mais especificamente, da versão de Roland Emmerich em 1998 com Mathew Broderick e Jean Reno pra cá - andei um tanto desapontado com a criatura nas telas. Mais do que isso: por vezes, até mesmo acreditando que ele era o coadjuvante em sua própria história. Aqui não. 

O primeiro aspecto que chamou minha atenção em Godzilla minus one foram os estupendos dramas humanos criados pelo diretor, colocando o pós-guerra como uma narrativa forte e legível aos espectadores. 

E o próprio design da criatura, que mantém a essência do personagem histórico (que completou 70 anos em 2023), é um acerto também muito bem-vindo por parte da produção. Aliás, hollywood bem que poderia aprender com este longa a não meter a mão nas criações asiáticas. Eis um projeto que respeita seu protagonista, não o transforma num reles paspalho...

No mais, cenas de batalhas inebriantes, muita autodestruição e ainda a torcida (de minha parte, é claro!) para que uma família se reúna e recomece suas trajetórias do zero.

Esqueçam super-heróis repetitivos, zumbis correndo que nem idiotas pelas ruas, vampiros emo, criaturas mitológicas, etc etc etc... Esse aqui foi o filme "de ação" (entre aspas porque é bem mais do que isso) do ano. E os donos de cinema, burros, de novo, tiraram ele de cartaz em muitos lugares cedo demais. 


domingo, 17 de dezembro de 2023

...e ainda é o melhor!


Até o último minuto, o da virada, aguardemos surpresas. Elas podem, sim, surgir a qualquer momento. 

O ano de 2023 acabando e ainda assim, nos acréscimos, quase me engasgo com a notícia de que Superman - o filme, clássico dirigido por Richard Donner, comemora 45 anos de existência. Como assim? Onde é que estava que não percebi que o tempo voou desse jeito? Superman (para quem teve a honra de ver nos cinemas e/ou alugou em VHS nas locadoras) é um fenômeno da cultura pop praticamente inigualável. Principalmente se levarmos em consideração o que era a tecnologia naquela época. 

Esqueçam CGI, Chromakey, Imax, 4K... Gente, nós ficávamos deslumbrados só de ver o filho de Krypton voando! E eu queria fazer igual na sala de casa. Mais do que isso: houve um tempo em que eu queria ser o ator Christopher Reeves (que dá vida ao herói). Até hoje fico triste com a forma como a vida dele terminou. O cara ERA uma lenda. 

Acompanhamos a saga de Clark Kent, antes Kal-El, último sobrevivente de Krypton, que foi completamente destruído mesmo com todos os esforços de seu pai, Jor-El (Marlon Brando; sim, aquele mesmo!), para salvá-lo. Ele é adotado por Jonathan e Martha Kent e, depois de adulto, vai para Metrópolis tentar a vida como jornalista. 

O problema? A mente mais maligna do mal, Lex Luthor (Gene Hackman, outro monstro sagrado de hollywood), que pretende destruir o país a qualquer preço. E, é claro, como pano de fundo, uma love story com a colega do Planeta Diário, Lois Lane (Margot Kidder).

Superman - o filme é, para mim, até hoje, a melhor versão do super-herói transposta para as telas. E também a que mais tem clima de HQ, aquela sensação de coisas feitas no improviso (muito também pela carência de efeitos especiais melhores na época). E uma opinião minha que sempre rende briga com os nerds chatos de plantão: não consigo entender quem acha Henry Cavill um superman melhor. Sempre o achei frio, todo duro, sem carisma. Apenas um sex symbol. 

E em quatro décadas e meia de jornada é fácil entender o porquê do longa ainda ter tanto prestígio junto aos fãs (e não somente por se tratar do início de um ciclo, que rendeu três continuações, mas como filme solo também). 

A cena em que Superman gira no sentido anti-horário do planeta terra para salvar Lois Lane (eu sei, eu sei... vão dizer que eu dei spoiler, mas... sério! o filme tem quase 50 anos. Dá um tempo, gente!) se tornou uma de minhas cenas eternas da história da sétima arte. Lembro que cheguei a ler livros de física depois de ver o filme para entender se aquilo seria realmente possível. E somente por isso já vale a pena concordar com o quanto essa produção era - e ainda é - à frente do seu tempo.

E o legado disso? Vermos a DC se perder dia a dia com decisões equivocadas sobre o universo do qual o personagem faz parte. Uma pena! Contudo, os fãs mais nostálgicos sempre lembrarão (às vezes com lágrimas nos olhos) da trilha, das cenas de salvamento, da visão de raio-x, do super voando e eu querendo saber como eles fizeram aquilo acontecer, naquela época...

Ah, gente, hollywood já foi foda. Por que esse tempo não volta mais, hein? 


quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

A vida pode ser simples (nem que seja numa HQ)


Em meio a tanto deslumbramento, tanta ganância, uma sociedade que vive de likes e selfies 24 horas por dia e um sentimento de estarmos caminhando dia a dia rumo ao fundo do poço, é louvável se deparar com um artista que almeja como primeiro objetivo mostrar (seja musicalmente, literariamente, cinematograficamente, etc) o lado simples da vida. 

Temos muito - muito mesmo! - a aprender com as gerações passadas, aquelas da época em que viver no subúrbio era ver seus vizinhos com as cadeiras na rua, em frente as suas casas, conversando uns com os outros até de noite. Essa cena parece ter um século, mas não! Não faz tanto tempo assim. E o país era outro. 

A coleção de tiras Material poético, de Evandro Alves, resgata grande parte desse sentimento através de traços simples (sim, não esperem a exuberância de um Moebius ou a narrativa forte e denunciatória de um Frank Miller. Não se trata disso o projeto!) e uma nostalgia que, cá entre nós, não cabe no coração de quem viveu esse período. 

Alves dirige seu olhar para as cidades do interior que ainda resistem à megalomania da malfadada globalização. Nos apresenta pássaros voando, netos que esperam a benção de suas avós antes de dormir, meninos ávidos para pegarem frutas no pé, insetos namorando flores, o caminhar descalço pelas ruas das pessoas mais humildes, os cachorros que seguem os malucos que existem em qualquer cidade, um simples pôr-do-sol aqui, uma singela flor de mandacaru ali, uma andorinha solitária acolá...

...e isso (acreditem!) é só o começo de um grande "ensaio sobre o que a vida poderia ser, se quiséssemos, mas na maioria das vezes preferimos o caminho mais controverso, o do status a qualquer preço". 

Gosto da paleta de cores usada pelo artista e, principalmente, da sensação de rabisco em suas imagens. Eles dão, juntos, uma conotação de obra crua ao trabalho, que é sublime. Afinal de contas, quem foi que disse que sofisticação, exagero, CGI, imagens pixeladas e outras bobagens que só encarecem o processo muitas vezes funcionam sempre?

Ao fim da leitura me lembrei dos meus tempos de ler gibi da Turma da Mônica (antes que a MSP se tornasse o que é hoje, uma empresa que só visa o lucro e a hipocrisia) e os saudosos Almanaque Disney que, hoje em dia, mal e porcamente encontramos em algum sebo ou vendedor de coisas antigas em feiras livres de bairro. 

A vida, meus caros leitores, pode sim ser simples (mesmo que agora apenas numa HQ - o que é uma pena, convenhamos!). Contudo, que continuemos a sonhar com dias melhores, pois isso ainda é de graça. 


domingo, 10 de dezembro de 2023

Aquele letreiro... 100 anos depois


Quando os cinéfilos de verdade pensam em cinema, em sétima arte, mais especificamente em hollywood, é quase impossível não lembrar daquele famoso letreiro em Los Angeles que já foi cenário (ou, ao menos, visto) em tantas produções. Do que a maioria das pessoas não sabe é das inúmeras histórias envolvendo o ponto turístico que este ano completa 100 anos. 

Primeiramente: ele foi erguido ali em 1923 como hollywoodland, um empreendimento imobiliário de luxo dos mais cobiçados na época. E passou por muitos reveses e deteriorações com o passar das décadas. 

Talvez a maior tragédia envolvendo-o foi a de 1932 quando a atriz britânica Peg Entwhistle tirou a própria vida se atirando da letra H. Daquelas histórias que normalmente despertam o interesse de ficcionistas ao redor do mundo por sua carga mista de incompreensão e curiosidade mórbida!

Já na década de 1940 vândalos e tempestades de vento derrubaram a famigerada letra H, fazendo com que os moradores da região pedissem à prefeitura da cidade que pusessem o letreiro abaixo. Adiantou? Que nada! A Câmara de comércio de hollywood ainda via a instalação como uma marca rentável e decidiu reformá-la. Com uma diferença: retiraram as últimas quatro letras para que a peça passasse a representar toda a cidade e não apenas um território específico.

Moral da história: em 1949 o letreiro, recém restaurado, reinaugura como Hollywood (e assim o vemos até hoje). 

Mas o sol devastador e novas tempestades fizeram o favor de, novamente, desgastar as letras. E eis que, em 1970, um grupo de celebridades (incluindo o roqueiro Alice Cooper, o fundador da Playboy Hugh Heffner e o cantor Andy Williams) bancam uma nova reforma, trazendo o letreiro de volta aos seus dias de glória. Detalhe: as letras antigas, de madeira, são agora substituídas por outras, mais compactas, feitas de aço.

Embora ele não seja mais hoje em dia mantido iluminado com frequência (por conta de reclamações dos próprios moradores da região), há um movimento crescendo para que ele volte a ser, por conta de eventos que a cidade abrigará nos próximos anos (como a copa do mundo em 2026 e os jogos olímpicos em 2028), que certamente atrairão um número gigantesco de turistas. 

Ou seja: já prevejo polêmicas e bate-boca, principalmente depois do resultado das próximas eleições no ano que vem (dependendo de quem vencer a corrida presidencial). Os conservadores e puritanos certamente vão reclamar - de novo! - de toda essa luz na cara deles. 

Mas polêmicas e discussões à parte, quem diria que aquele letreiro que surgiu antes mesmo do nascimento do cinema falado, ainda estaria ali, no mesmo lugar, um século depois, não é mesmo? Quer saber: longa vida a ele!


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

R.I.P Ryan O'Neal


Aconteceu de novo. Eu vi a notícia do falecimento do ator Ryan O'Neal e assim como quase fiz com o guitarrista Lanny Gordin, ia me limitar a postar em meu perfil no twitter um post R.I.P. Mas não resisti. Lembrar de O'Neal é tão mágico, tão sublime para a história do cinema, que pensei (de novo): eu preciso falar um pouco mais do que isso. 

Infelizmente, muitos fãs preferem lembrar de Ryan apenas como um dos grandes galãs do cinema hollywoodiano (e em grande parte por causa de seu personagem Oliver em Love story, de Arthur Hiller). Cá entre nós: estão erradíssimos! Ele foi bem mais do que isso e merece - a meu ver - um capítulo à parte na história do cinema americano. 

Era fácil entender porque as mulheres eram loucas por ele (e olha que ele foi casado com a melhor das panteras, Farrah Fawcett, minha crush eterna!). Entretanto, ele também tinha um biotipo que funcionava para praticamente tudo. Podíamos vê-lo em comédias românticas e também em filmes de espionagem. Fez faroeste quando a oportunidade lhe apareceu, e deu até as caras na famosa série de tv Perry Mason

Mais do que isso: como esquecer que ele foi Barry Lyndon, no longa homônimo - e inesquecível - do mestre Stanley Kubrick? Que quando o assisti, ainda moleque durante uma sessão do Corujão num longínquo anos 1990, fiquei semanas ruminando sua presença nas telas, a trama forte, precisa, sem rodeios. Houve um tempo em que eu queria ser ele. 

Contudo, nada dignifica mais sua carreira do que sua parceria com o diretor (também já falecido) Peter Bogdanovich. Primeiro pelo clássico e exuberante Lua de papel, onde interpreta Moses Pray, um golpista que precisa levar uma jovem pirralha (atuação ímpar de Tatum O'Neal) que acabou de perder a mãe, até a casa de seus parentes, mas se mete em inúmeras confusas pelo meio do caminho; e depois por No mundo do cinema, que mostra os bastidores de uma produção cinematográfica nos anos 1910 (e que deveria ser mais badalado pelos fãs, tanto de Ryan quanto de Bodagnovich).

Dicas e gostos à parte, se puderem entrar no perfil do ator no IMDb, fuçem toda a filmografia dele. Aposto que se surpreenderão com suas escolhas de carreira, que iam bem além de um mero rosto (ou corpo) bonito. 

Uma pena! Ryan, que nos deixa aos 82 anos, é mais um que parte e deixa os cinéfilos mais nostálgicos cientes de que hollywood vem empobrecendo culturalmente dia-a-dia e sem uma renovação à altura. Só nos resta, ao fim, caçarmos alguma coisa com ele para ver no you tube ou algum serviço de streaming (nessa caso, uma tarefa um pouco mais complicada, vide o imediatismo dessas empresas e seu descompromisso com a história audiovisual). De repente, quem sabe, não programam algo no Telecine Cult... Ou talvez eu esteja só sonhando acordado. 

Em suma: fica com Deus, Ryan! Você vai fazer falta. 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Sério mesmo, Time?


Eu volta e meia me pergunto (e nos últimos anos tenho feito isso com cada vez mais frequência) o que a imprensa e o cidadão comum considera - ou idolatra - como cultura. Passamos por tanta coisa extraordinária no setor em pouco mais de dois séculos e ainda me vejo perplexo com certos "reconhecimentos" por parte da chamada grande mídia. 

Dito isto, leio hoje na Folha de São Paulo a notícia de que a cantora Taylor Swift foi escolhida como "A pessoa do ano" pela revista Time. Até aí tudo bem, pois passamos quase que o ano todo falando da Eras Tour com a qual Taylor rodou o mundo (ou, pelo menos, o que ela chama de mundo). O que me intrigou de fato foi a informação de que, em quase um século de existência da publicação, esta é a primeira vez que uma pessoa ligada à cultura vence o prêmio.

Na mesma hora meu cérebro começou a formigar. Sério mesmo, Time? Taylor Swift? A primeira? Honestamente... O mundo parece só gostar de arte, cultura e entretenimento quando remete exclusivamente à cifras, turnês caríssimas e o mainstream pop vazio e repetitivo. 

O mais assustador na informação que encerra o segundo parágrafo: Michael Jackson não foi "A pessoa do ano" da Time? Nem nos tempos de Thriller? Putz! Nem John Lennon ou Mick Jagger ou Marvin Gaye, sequer Madonna? Sim, soa oportunista a escolha. Mais até: covarde. 

Nunca entendi o sucesso de Taylor Swift. Se me pedirem para cantar algum hit dela, conheço apenas "Shake it off" (cujo clipe, por sinal, é uma grande bobagem com flertes à diversidade e um mundo mais igual). E chamam essa moça do qual conheço apenas um hit de fenômeno global! E eu penso: do que chamariam hoje em dia Led Zeppelin, a Motown ou mesmo Frank Sinatra?

Ou há algo de errado com a cultura contemporânea (e peço desculpas desde já por não citar expoentes da literatura, do cinema, das artes plásticas, etc, mas é que a música vive um momento que eu considero de crise de valores) ou, então, a imprensa internacional entregou-se de vez ao gratuito promovido pelo show business às custas de muita alienação e vendagens mais do que meramente expressivas. Em outras palavras: venderam a alma mesmo. 

Alguns anos atrás chamaram essa moça de influência e até hoje, confesso, não consegui entender direito o porquê. Tem tanta gente fazendo mais do que ela, cantando melhor do que ela (Adele, Joss Stone, a própria Lady Gaga em pleno auge, alguém?), com propostas infinitamente melhores do que a dela e, no entanto... "Taylor Swift: a pessoa do ano". Talvez a que mais ganhou dinheiro esse ano, vá lá (embora Beyoncé tenha também faturado os tubos com a sua Renaissance Tour em 2023), agora... Pessoa do ano? Por quê, exatamente?    

Enfim... É nessas horas que eu tenho a legítima certeza de que está cada vez mais difícil para alguém da minha geração - na casa dos 40, 50 anos - ser fã de alguém nesse século XXI. Cultuamos reles produtos (a grande maioria descartáveis) e os verdadeiros criadores de conteúdo ficaram em segundo plano. De vez. 

Que tristeza! 


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Thriller ainda é foda!


Que grata surpresa foi ver no último sábado, às 22 horas no canal MTV, o documentário Thriller 40, sobre o álbum de música mais vendido da história da cultura pop. E principalmente: perceber que a imagem do rei do pop, Michael Jackson, permanece até hoje intocável. 

Thriller 40 tem todos os elementos possíveis de um projeto que é a cara da geração dos anos 1980: nostalgia pura, ótimos depoimentos, detalhes sobre o processo criativo e, o mais importante: imagens raras, clássicas, eternas, uma sensação de fenda no tempo constante. 

Acompanhamos música a música o árduo trabalho, a parceria entre Michael e Quincy Jones, entrevistas com antigos colaboradores e também com ícones pop de outras gerações (W.i.l.l.i.a.m, Mary J. Blidge, Usher, etc), cujas carreiras só foram - e são - possíveis até hoje graças a influência do astro por trás de hits como "Billie Jean", "Beat it", "Wanna be startin' something", "Human nature" e tantos outros clássicos. 

Nas partes em que o diretor, Nelson George (e aqui recomendo também o livro que ele publicou sobre o álbum, Thriller: a vida e a música de Michael Jackson, que é ótimo!) nos apresenta os bastidores dos clipes meus olhos marejaram de lágrimas, fazendo meu cérebro voltar àqueles dias de adolescente tímido ouvindo tudo o que podia sobre Michael em rádios, LPs, cassetes, etc...

O diretor também não fosse de polêmicas e assuntos mais espinhosos, como o acidente envolvendo o cantor no famigerado comercial da Pepsi e do preconceito da MTV com o artista, mesmo sendo já bem sucedido na carreira. 

Entretanto, o que os fãs mais nostálgicos aguardam (e são atendidos de forma gloriosa) é a maquiagem de Rick Baker no clipe de Thriller - do diretor John Landis -, a primeira vez que Michael realizou o moonwalk num show comemorativo da Motown e a festa de Grammys que ele faturou na época. 

O único defeito de Thriller 40: ter apenas 1 hora e 30 minutos. Os fãs de séries no streaming certamente iriam adorar uma temporada inteira repleta de informações e bônus os mais diversos. Enfim... Era o que tínhamos para o dia e valeu cada segundo sentado em frente à tv. 

Ao fim do doc e com a passagem dos créditos ficou a legítima sensação de que o álbum que entrou para a história do show business ainda é foda e não à toa as gerações de fãs de Michael Jackson só aumentam (informação essa que, inclusive, é mostrada no longa). 

Assistam quando tiverem a chance, sejam vocês fãs do cantor ou não. O filme é o puro suco da cultura pop. E vamos combinar: infinitamente melhor que certas coisas que andam sendo badaladas hoje em dia. 


sábado, 2 de dezembro de 2023

O mago da guitarra


Na última terça-feira postei em meu perfil do twitter (agora X) R.I.P Lanny Gordin, após saber - com tristeza - da morte do guitarrista considerado por muitos no país o mago com o instrumento nas mãos (para mim, ele sempre estará, no mínimo, no Top 3 com folga). Contudo, passados os dias, dei-me conta da leviandade do meu ato. 

Como poderia resumir a grande perda que significou para a MPB a partida de Lanny com um mísero comentário de uma linha? Logo, eis-me aqui de volta ao blog para uma homenagem maior. 

Lanny Gordin foi lendário em tudo que se propôs a fazer e também uma figura ímpar que merecia um estudo de caso ou biografia mais apurada. Para começo de conversa, é quase impossível relacioná-lo a uma única pátria: o pai era de origem russa. A mãe era de origem polonesa. O menino nasceu em Xangai, na China, e passou parte da infância em Tel Aviv, Israel. Veio para o Brasil aos seis anos e daqui não saiu mais. 

E o mais importante: poucos entenderam a nossa música tão bem quanto ele. 

O garoto, que ainda adolescente, se apresentava no Stardust, boate do seu pai, em São Paulo, queria tocar como quem quer respirar. Para ele, vanguardas e protestos não ressoavam em seu trabalho. O mais importante era o poder dos riffs e a mensagem transmitida por seus acordes. Em 1967 uma passeata contra a guitarra elétrica tomou o centro de SP, repleta de grandes nomes da MPB que viam no instrumento uma ameaça ianque. Putz! Na boa... Eles não tinham ouvido Lanny. Se tivessem ouvido, nem teriam começado essa joça!

Lanny  aprendeu com Hermeto Pascoal o que era a improvisação jazzística. Viu seu mundo virar de ponta a cabeça com Jimi Hendrix dedilhando "Purple Haze", "Voodoo Child", etc. Passou pela Jovem Guarda, pelo Tropicalismo, tocou e gravou com muita gente. E cedo demais, entrou também numa viagem sem volta, que o consumiu de todas as formas. 

Sua vida foi difícil: uso excessivo de ácido, diagnóstico de esquizofrenia, internação em sanatórios, a impossibilidade de se manter ativo (e por vezes lúcido), os últimos anos na condição de acamado e a recente pneumonia, cujas sequelas tiraram-lhe a vida.

Mas se por um lado ele enfrentou um leão por dia, por outro nos entregou um misto de vigor, descontração, jornada, mas também fúria em cada arranjo criado. Ele era Hendrix (versão tupiniquim) + psicodelia + agressão + sujeira + distorção + improviso + o que mais fosse possível em termos musicais. Os jornais ao publicarem seus obituários dizem, de forma quase uníssona, que em muitos níveis Lanny Gordin era o cara certo na hora certa. Disseram tudo. Ele podia não dominar o nosso idioma, mas com seis cordas elétricas falou brasileiro muito mais que muito cidadão por aqui.

E acho impossível que o fã (o verdadeiro fã) de boa música não seja capaz de reconhecer e admirar o seu trabalho. 

Ele foi peça-chave da Tropicália e participou de alguns dos álbuns centrais da historiografia musical do país como, por exemplo, Caetano Veloso (1969, conhecido como Álbum Branco), Araçá Azul (1972), Gilberto Gil (1969), Expresso 2222 (1972), Gal Costa (1969), Le-Gal (1970) e Fatal – A Todo Vapor (1971), além de  integrar o grupo Brazilian Octopus. Também contaram com a contribuição de Gordin em seus trabalhos artistas como Jards Macalé, Rita Lee, Tim Maia, Pepeu Gomes e Erasmo Carlos, entre outros.

Entre seus maiores legados musicais, certamente enalteço um dos solos de guitarra mais importantes da história da música popular brasileira. Refiro-me à sua presença em "Atrás do Trio Elétrico", de Caetano Veloso (responsável também pelo surgimento de Dodô e Osmar no carnaval da Bahia), além de "Back in Bahia" e o solo de baião formidável em "17 léguas". Corram para ouvir essas preciosidades no youtube, no deezer ou no spotify! 

Com isso nosso mercado fonográfico perde mais uma lenda insubstituível, depois de tantas perdas substanciais nos últimos tempos (Gal Costa, Erasmo Carlos, Rita Lee...). E eu continuo me perguntando, ainda sem resposta aparente: "onde está a renovação à altura?". Pobres de nós, ouvintes fanáticos! 

P.S: Fica com Deus, Lanny. Você era foda!


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Um épico só até a página 2


Assisti Napoleão, de Ridley Scott, e saí do cinema num sentimento misto de decepção e estranhamento. O projeto já prometia (no mau sentido) por conta dos comentários raivosos do diretor à críticas de historiadores acerca de "incongruências históricas" na produção. Deu no que deu. 

Um anexo importante: saí da sessão me lembrando de um outro drama histórico de Ridley, Cruzada (com Orlando Bloom e Eva Green), que também me desapontou muito na época de seu lançamento. Em ambos os casos o cineasta passa anos-luz do brilhantismo de seus melhores trabalhos (Alien - o 8º passageiro, Blade Runner, Os duelistas, Thelma & Louise, etc).

Em vários momentos do filme a narrativa me lembrou das antigas Enciclopédias Barsa e do Almanaque Abril que vendia nas bancas de jornal. Por quê? Um compêndio de resumos sobre fatos históricos os mais diversos se sobrepondo de forma atabalhoada, por vezes sem sentido. 

A edição do longa daria um grande estudo de caso sobre "como não realizar um longa cinematográfico" e tive a nítida sensação de que interferiram diretamente no trabalho do profissional. Sério. Não acredito que alguém como, por exemplo, a fenomenal Thelma Shoemaker, parceria de anos do Scorsese, permitisse tamanha intrusão por parte da produtora no seu processo. 

Até Joaquin Phoenix (que tenta dar vida à Napoleão) parece completamente perdido em meio à batalhas épicas e uma cinematografia escura em demasia. Era isso mesmo, Ridley? Você não queria que nós víssemos alguma coisa? Foi o que me pareceu em várias sequências. 

A morte de Maria Antonieta na guilhotina, Napoleão no Egito em meio às pirâmides, Maria Josephine e seus adultérios, Invasão da Rússia, Revolução francesa, a batalha de Waterloo... Tudo parece tão zoneado, simplesmente jogado diante de nossos olhos, sem que tivéssemos ao menos tempo para refletir minimamente sobre o contexto. Quer dizer: caso houvesse contexto. No final o que sobra é um épico só até a página 2, repleto de erros grosseiros e clichês.  

Não me surpreenderei caso o longa fature algum prêmio no Framboesa de Ouro. Seria merecido, principalmente pelo desleixo com a forma e a falta de respeito para com os fãs do gênero, que aguardavam esse projeto há bastante tempo. Não recomendo a ida ao cinema. Quem preferir aguardar a famigerada versão de 4 horas prometida no streaming, fique à vontade. Mas acho difícil que melhore tanta coisa assim. 

O próximo longa de Ridley Scott será Gladiador 2. Sai Russell Crowe, entra Paul Mescal na pele do protagonista, com direito à presença ilustre de Denzel Washington. Mas confesso: tenho receio do que vem por aí...


domingo, 26 de novembro de 2023

2023 foi realmente de alucinar


Em matéria publicada no Estadão (ou foi na Folha de São Paulo? Fugiu-me à memória agora! Ou um, ou outro) aparece que a palavra do ano escolhida pelo dicionário Cambridge foi Hallucinate - o verbo alucinar - e, a princípio, eu dou uma gargalhada, irônica. Mas logo a seguir, penso: não houve palavra que explicasse melhor o que foi 2023. 

Olhem ao redor, vejam o aconteceu e o que ainda está acontecendo no mundo. Só mesmo a alucinação explica o que nos tornamos. 

Os responsáveis pela escolha da palavra como definidora do ano dizem que ela remete ao fato de "parecer, ver, ouvir, sentir ou cheirar algo que não existe, seja por um problema de saúde ou por consumo de drogas". Mais: incluem na discussão o tema da IA (o que, por si só, já gera descontentamento e controvérsias), alegando que "é quando sistemas de inteligência artificial, que geram textos que imitam a escrita humana, alucinam e produzem informações falsas". O tema é complexo, eu sei...

Porém, mais do que viciados e máquinas que pretendem operar sozinhas a realidade - o que me faz lembrar dos androides de O exterminador do futuro querendo a cabeça de John Connor -, há também uma questão séria a ser discutida e que, para mim, dialoga e muito com a escolha da palavra: a cegueira ideológica. 

Vivemos numa era de total descompromisso com a história. Há quem queira, inclusive, apagá-la de vez, pois prefere acreditar que tudo não passou de mentira. Já um segundo grupo dá mais credibilidade às fake news e conceitos como pós-verdade (que, quando esmiuçados de forma crítica, mais parecem pura histeria, paranoia programada por grupos de interesse nada idôneos). E o resultado dessa catarse onde não se sabe mais ao certo o que é real, o que é ficção, é catastrófico.

Gente pedindo censura, querendo que livros sejam queimados (Ray Bradbury estava certo: o Fahrenheit 451 é real), teorias da conspiração ganhando força na internet, robôs e drones visando o controle da opinião e do espaço geográfico, o culto exagerado à beleza, à fama e ao show business (e dentro de uma estrutura cada vez mais propensa à escândalos e tragédias), etc etc milhões de etc.

Sim, alucinamos. Na verdade, a escolha bem poderia ter sido feita uns anos antes pelo dicionário Cambridge. E se não acordarmos, hoje, agora, sabe lá Deus o que sobrará de nós, reles humanidade!

"Que caminho tomar?", parece a única pergunta coerente a se fazer neste momento. Pena que este mísero blogueiro, colunista ou como quiser chamá-lo, não tenha a menor ideia de uma resposta plausível. E pior: a sociedade não está nem aí, completamente anestesiada pelo óbvio, pelo fútil, pelo "museu das grandes novidades", como bem disse certa vez o saudoso poeta do rock, Cazuza.

No fim, como aprendemos com as antigas telenovelas, resta "aguardar as cenas dos próximos capítulos". Mas que é aterrorizante, não tenham dúvidas... E com tendência a piorar. Rezemos que não.  

 


sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Ode à poesia


Ligo o computador e na primeira notícia mostrada no Google meu sorriso se abre espontaneamente. 

Ver a notícia na internet de que a nova edição da FLIP, em Paraty, reflete o bom momento da poesia no mercado editorial muito me alegra. Dentre os 44 autores convidados dessa edição 19 são poetas. E há meio que um microcosmo de tudo o que anda rolando no mundo e no país atualmente: da poeta canadense Dionne Brand que defende que a linguagem neutra é uma grande bobagem, um desperdício de tempo (e concordo com ela em gênero, número e grau) à poesia slam (fenômeno literário que ganhou força nos últimos anos e meio que reinventou a forma como pensamos esse tipo de texto).

Devo confessar aqui: custei a embarcar na poesia. Meu negócio antigamente era prosa, literatura policial então... Achava, na adolescência, o gênero um tanto quanto pedante, nariz empinado. Lêdo engano meu! Precisava conhecer (graças a Deus ainda novo) autores como Fernando Pessoa, Allen Ginsberg, Carlos Drummond de Andrade, Saphire, João Cabral de Melo Neto, os sonetos de Shakespeare, e muito mais (lógico!).

Ainda vejo a poesia como o grande desabafo, a grande fúria proposta pelo homem; o lugar onde defendemos nossas ideias e pontos de vista com unhas e dentes, custe o que custar, ao preço que for. Num mundo onde uma parcela gigantesca da humanidade prega - de forma terrível - contra as diferenças e o direito a questionar o grupo (principalmente quando o grupo não passa de uma manada sem sentido), a poesia explorou caminhos, sim, no plural, e mostrou por a mais b que não precisamos atender à expectativas. Precisamos, isso sim, sermos nós mesmos. 

Esqueçam a perseguição doentia e o compromisso desmedido com a norma culta (nem sempre ela atende às necessidades do autor); fujam dessa tentativa torpe de soarmos unicamente representativos ou simplesmente étnicos (às vezes isso só gera dissensões, divisões, rompimentos); não se limitem à estilos, padrões, formatos, caminhos. Leiam os grandes, vejam o que eles fizeram. E logo a seguir trilharam uma nova rota, recomeçaram do zero, de novo e de novo. 

A arte (e a poesia é um dos seus braços, a meu ver, mais ousados; mais corajosos) é feita de enfrentar riscos, encarar encruzilhadas, ouvir desafetos e suas eternas difamações. E no auge da batalha - seja contra leitores, editores, críticos, imprensa, etc - somente os corajosos seguirão adiante. Mais: serão lembrados. 

Vejo nessa ode à poesia na FLIP um sinal de bons tempos vindo à toa. Andava cansado de toda essa parafernália burocrática proposta pela literatura de auto-ajuda (que não passa de manuais de regras vazios, imprecisos, sonolentos). E aquela história de young adults como opção de leitura para jovens... Já deu, né!

Que a poesia dê as caras (de novo) com força e se estabeleça. Ela merece. E nós, leitores de bom gosto, também! 


quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O registro vivo de um país que não evolui


Dentre as minhas muitas paixões particulares encontra-se, lá no topo da lista, as adaptações literárias feitas para os quadrinhos. Adoro a relação entre nossa literatura e a nona arte, principalmente quando o artista chamado para realizar o projeto é um profundo admirador da obra original. E digo isso porque nesses casos o artista engrandece ainda mais o texto-base.

Foi exatamente assim que me senti ao final da leitura (e releitura) de O pagador de promessas, obra teatral de Dias Gomes transposta para os quadrinhos por Eloar Guazzelli para a coleção Grandes clássicos em graphic novel, da editora Agir.

A história, mais do que conhecida para os fãs do teatro nacional (e que inclusive ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1962 em adaptação para o cinema dirigida por Anselmo Duarte), nos traz a saga de Zé do Burro, que atravessa a cidade com uma cruz nas costas por conta de uma promessa feita à Iansã (que na religião católica é representada por Santa Bárbara) que salvou da morte seu burro, Nicolau. 

Ao chegar à igreja acompanhado da mulher se depara com a intolerância de Padre Olavo, que vê em sua promessa uma relação satânica e acredita piamente que Zé do Burro está, isso sim, tentando se passar por Jesus. Como consequência desse entrave, aparece todo tipo de oportunista querendo ou ganhar fama com o caso, ou destruir a vida do humilde pregador. Seja o jornalista tendencioso ou o cafetão que se aproveita da ingenuidade de sua mulher, são muitos os que querem lhe usar por proveitos próprios.

A chegada do Monsenhor e, posteriormente, da polícia ampliam ainda mais o clima de caos e o cerco sobre Zé do Burro. E o que resta como epílogo dessa trama insólita é o desfecho macabro.

Assim como na peça de Dias Gomes, a HQ de Eloar também mostra que o preconceito no Brasil é um caso antigo e de (quase impossível) solução. São muitos os agentes que alimentam esse ensaio sobre a cegueira religiosa. O que muda, no final das contas, é apenas o fato de que a ideologia extremista passa de geração à geração, construindo uma legião de idiotas que simplesmente não conseguem enxergar o mundo - e a sociedade - a um palmo do próprio nariz. 

Os traços de Eloar, embora simples, descrevem com exatidão a trama e sua paleta de cores é irresistível. A edição ainda conta com um prefácio luxuoso do poeta Ferreira Gullar que situa a narrativa para os marinheiros de primeira viagem. 

Recomendo efusivamente a leitura e, se possível, que leiam também a peça original. Além de ser um dos melhores textos da nossa dramaturgia, trata-se de um registro preciso sobre um país que não evoluiu com o passar das décadas - na verdade, não tem sequer interesse em mudar.

Procurem!!! 


segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O rock ainda é possível


É triste não ver o rock protagonizando nada, muito por conta da caretice mundial, do excesso de jabá e o bundamolismo pop cada vez mais acentuado. Longe das estações de rádio e dos programas televisivos aqui no Brasil, o gênero musical sobrevive por aparelhos, sabe lá Deus como. Isso sem contar alguns expoentes que viraram reaças e bobalhões notórios. 

Pior: saber da capacidade que o rock possui de convergir com outras vozes, estilos, propondo parcerias que a priori você pensaria: "isso não vai dar certo". E ele prova que você estava absolutamente errado. Foi assim que me senti ouvindo o mais novo álbum da cantora Dolly Parton, Rockstar. E desde já adianto: não foi à toa que essa senhora entrou para o Hall da fama do rock n' roll. 

Dolly reúne clássicos do gênero em interpretações íntimas, mas não menos poderosas, e ainda canta lado a lado com feras do segmento, como Steve Tyler (vocalista do Aerosmith) e o eterno beatle Paul McCartney, dentre outros. 

Difícil eleger uma faixa que tenha me conquistado mais. A seleção de hits é grande e cada um deles é reinterpretado de forma tão melodiosa, tão brilhante, que é quase impossível eleger preferidos. Em outras palavras: o trabalho vale pelo conjunto da obra e a maneira como homenageia o rock e tudo o que ele nos proporcionou até hoje. 

Entre os sucessos, há um pouco de tudo: "Every breath you take" (do The Police), "Don’t let the sun go down on me" (de Elton John), "Stairway to heaven" (do Led Zeppelin), "(I can't get no) Satisfaction" (dos Rolling Stones), "Let it be" (dos Beatles), "Purple rain" (de Prince), "Baby, I love your way" (Peter Frampton), "Heart of glass" (do Blondie)...

Detalhe curioso: fiquei até surpreso com a dobradinha de Dolly, lado a lado nos vocais com Miley Cyrus, em "Wrecking ball".

Fãs do rock e amigos leitores, não deixem de dar uma chance a este álbum. Mais: a esta preciosidade. Ao fim das 30 faixas ouvidas no youtube, uma certeza me ficou clara. A de que o rock n' roll ainda é possível, e não somente por conta de bandas oriundas do Eurovision ou alguma artista pop que se aventurou por esse caminho nos últimos anos. Não. 

Mas é primordial fazer o público entender que (ainda) há espaço para ele, em meio a divas, sertanejos canastrões e invencionices que, muitas vezes, só duram um carnaval - ou festival - e nada mais.  


sexta-feira, 17 de novembro de 2023

That was entertainment!


Participei esta semana de um fórum online de cinema que discutia, entre outras temáticas, o futuro da sétima arte e as consequências da última greve dos sindicatos dos atores e roteiristas para a indústria cinematográfica. E em meio a debates acalorados vi muitos rostos (e discursos) de descontentamento com o caminho seguido nas últimas décadas pelo cinema blockbuster. 

De "a sensação é de que o sonho realmente acabou" à "o negócio e o lucro imediato engoliram a arte de vez", saí do evento com uma sensação de mau gosto na boca. Realmente, empresas como Marvel, DC, Lucas Film, Disney e outras corporações transformaram a palavra entretenimento numa coisa chata, repetitiva, em muitos casos até mesmo antipática (e os fanáticos, nerds, seguidores alienados contribuíram - e muito! - para isso).

Terminado o fórum ligo a tv, coloco no you tube e me deparo na tela inicial com a indicação do documentário Electric Boogaloo: the wild, untold story of Cannon Films, de Mark Hartley, legendado em português, na íntegra. Resultado: minha mente viajou no tempo pelo menos umas três décadas e me vi - de novo - fuçando prateleiras nas saudosas videolocadoras. 

Se você não viveu a época da Cannon Films, nunca entenderá o que eu senti - e ainda sinto - toda vez que me lembro do período (e das minhas peregrinações atrás dos filmes). 

Essa geração atual tem o Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Nick Fury, Aquaman, Batman, Superman, Guardiões da Galáxia etc etc etc... Nós tínhamos Braddock (com Chuck Norris), Paul Kersey em Desejo de matar (com Charles Bronson), American ninja (com Michael Dudikoff) e o suprassumo do que existia de mais rico do que hoje chamamos de Cinema B. 

Electric Boogaloo nos apresenta o sonho (na verdade, um grande delírio que deu certo) dos primos Menahem Golam e Yoram Globus e sua saga para vingar em hollywood oferecendo uma opção "diferenciada" dos que os grandes estúdios produziram. E acreditem: eles realizaram uma façanha.

A Cannon era como uma espécie de fenda no tempo do mercado audiovisual. Podíamos torcer pela porradaria nos longas de ação como Assassinato nos EUA, Comando Delta, Stallone: Cobra (filme símbolo da minha adolescência), O grande dragão branco; acompanhar as aventuras de Allan Quattermain (algo como um Indiana Jones B, com Sharon Stone em começo de carreira) e também nos divertirmos com produções loucas como Lambada! A dança proibida, Breakin', O último americano virgem e o excêntrico musical A maçã.  

Grande parte desses filmes eram distribuídos aqui no Brasil pela America Video, que ficou famosa pela musiquinha que tocava nos trailers, parte da trilha sonora de Falcão - campeão dos campeões, um fenômeno da sessão da tarde nos anos 1980 que trazia Sylvester Stallone como um caminhoneiro que apostava todas as suas fichas num campeonato de queda de braço para sair do buraco e poder criar o filho.

Ao terminar de assistir o doc. me deu vontade, na mesma hora, de reencontrar a galera do fórum, desapontada com a indústria de hollywood, e enviar o link do filme para todos. Aposto que todos eles iriam se sentir como eu: renovados. Procurem no you tube! Ele ainda está por lá.

Aquilo, sim, era entretenimento, meus amigos! Quem viveu, não esquecerá jamais.       


domingo, 12 de novembro de 2023

Isso é um texto de respeito!


Como é bom ler alguém que sabe o que escreve (e como escreve). Nada vinha me irritando mais nos últimos tempos do que entrar em livrarias e sebos - estes últimos cada vez mais raros na cidade do Rio de Janeiro - e me deparar com autores fúteis, mas cheios de pose. Pior: sendo vendidos como a nova geração da literatura brasileira. 

E toda vez que me deparo com esses "exemplares", regresso à meus autores preferidos (Umberto Eco, Jack Kerouac, Philip Roth, Bernardo Carvalho, Rubem Fonseca, Mario Vargas Llosa, etc) e me reencontro com o bom texto. 

Há tempos procuro por Trêfego e peralta: 50 textos deliciosamente incorretos, coletânea de artigos (e algumas entrevistas) de Ruy Castro, nunca publicadas em livro até então. E desde que eu soube da existência desse livro tive a impressão de que ele prometia - e muito. Para a minha sorte, estava coberto de razão. Devorei-o em apenas 48 horas e ainda fiquei com um gostinho de quero mais. 

Ruy é praticamente um faz-tudo nesse meio da comunicação. De repórter do Correio da Manhã à autor das mais célebres biografias já produzidas no país (dentre elas, Carmen, O anjo pornográfico e Estrela solitária), é daqueles profissionais irretocáveis em tudo que faz. E com Trêfego e peralta não é diferente. 

Consegue dissertar com a mesma elegância e conteúdo pelos assuntos mais diversos. Da macaca Chita, companheira do Tarzan no cinema (vivido por Johnny Weissmuller) ao tropicalismo de Caetano, Gil, Tom Zé e companhia limitada; do Jack Kerouac, criador do seminal On the road, e ainda assim desmitificar toda sua grandeza editorial ao casal mais que louco (pelo menos, na época retratada) Baby Consuelo e Pepeu Gomes; do papel dos gatos como eternos vilões na cultura cinematográfica às memórias de 1968 e o que o AI-5 causou naquele período...

Na parte referente às entrevistas meu destaque vai para a conversa com o colunista social Ibrahim Sued. Se eu já o achava um contraditório por natureza, isso ficou ainda mais claro depois de ler o texto. 

Antes que me perguntem o que tem de tão extraordinário no texto de Ruy Castro, enfatizo dois pontos: a) ele escreve de forma simples, não inventa fórmulas, muito menos um discurso rebuscado, pedante; b) sua capacidade de reunir informações sobre praticamente tudo é assustadora. É como se deparar com uma enciclopédia humana. 

E isso, meus caros leitores, em tempos de exibicionismo e gente sem talento atingindo status de visionário, é artigo cada vez mais raro no país. 

Não quero me estender demais para não estragar a experiência alheia... Apenas finalizo esse breve post, dizendo: se tiverem a oportunidade de ler Trêfego e peralta, não a desperdicem. Das melhores coisas que eu li no gênero não-ficção nos últimos anos. Minha única decepção foi não ter conseguido lê-lo antes. Fica a dica. 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Os 3 hippies


Que delícia poder encontrar um clássico dos comic books depois de tanto tempo procurando a esmo! E no caso em questão os personagens só haviam sido publicados no país uma única vez, mais de cinco décadas atrás, na extinta revista Grilo...

De quem falo? Do trio Fat Freddy, Phineas Freak e Freewheelin Franklin, ou simplesmente Os fabulosos Freak Brothers, criação do mestre do underground Gilbert Shelton, aqui numa série de histórias curtas compiladas pela L&PM.

Ao lado do também mestre Robert Crumb, Shelton nos apresentou de forma ácida o lado B dos Estados Unidos, com suas contradições e eterna busca pela liberdade (e também por um modelo de vida alternativo).

Nas narrativas aqui reunidas testemunhamos o escárnio de seus personagens pra lá de desajustados, além da desordem, do desleixo, da falta total de assepsia e, claro, do inconformismo típico da sociedade hippie dos anos 1970. 

Entre baseados, bagunça e os inúmeros despejos (que os faziam, a todo momento, procurar um novo lugar para morar - e logo ser expulso de novo por falta de pagamento) acompanhamos a total incapacidade do trio para viver de forma minimamente sã. E acreditem: essa é a "melhor" característica deles!

Preferem gastar tudo que tem com erva do que pagar o aluguel, não admitem ser controlados por ninguém (principalmente mulheres), são sujos e desbocados por natureza e se tiverem a chance de passar a perna em alguém farão isso como estilo de vida. Em outras palavras: se publicados hoje em dia, seriam cancelados na primeira oportunidade. 

São o melhor estereótipo do politicamente incorreto que eu já li em toda a minha vida. 

Na última história da coletânea, então, Shelton nos propicia um show à parte e desnuda um pouco da própria história norte-americana, com sua linha tênue entre a chegada do progresso e o desejo de ganância de uma sociedade criada desde a origem para ser conquistadora. 

Procurem nos sebos e leiam, se tiverem chance. Os 3 hippies certamente estão entre as melhores criações da história da nona arte e todo leitor do gênero que se preze deveria conhecê-los. O quanto antes.     


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Grande Mussum!


"Morreu, aos 53 anos, o comediante e sambista Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum", dizia Cid Moreira, âncora do Jornal Nacional na TV Globo, em 1994... Eu me lembro como se fosse hoje. E principalmente: da tristeza que senti na mesma hora. 

Mussum foi das figuras mais engraçadas que eu já vi até hoje na televisão. Com lugar garantido junto à medalhões do nosso audiovisual como Chico Anysio, Jô Soares, João Dória, Oscarito, Grande Otelo e tantos outros. Tem gente que fica puto comigo até hoje quando eu digo com todos os esses que ele foi o melhor trapalhão. E foi, com folga. 

Não era oriundo do circo, não fez escola dramática, muito menos seguiu carreira no teatro. E, no entanto, detinha o mais fino humor dentro de si. Dito isto, fica aqui uma certeza: Mussum: o filmis, de Sílvio Guindane, é não só uma justa homenagem a este célebre músico e palhaço, como também um doce deleite para os fãs da comédia e, claro, os saudosos da minha geração, que sabiam que a tv naquele tempo era muito melhor. 

Aílton Graça encarna Mussum de forma ímpar; não consigo imaginar outro ator fazendo melhor. E mais: é engraçado por si mesmo, tanto quanto a personagem que encarna na tela. 

Acompanhamos a trajetória desse malandro carioca, mangueirense, flamenguista, viciado em mé e mulheres, do menino que descobre o samba por acidente e vai para o colégio interno, segue carreira na aeronáutica mas se encanta pela noite e o show business, casa, descasa e, que por ser hilário por natureza, cai nas graças de Chico Anysio, logo sendo engolido pelo mundo midiático. 

Os originais do samba, grupo do qual fez parte, um dos melhores do país naqueles tempos, e o programa Os trapalhões, hoje, se revistos com lucidez, foram grandes cerejas no bolo. O mérito mesmo é dele, Mussum, o humor cuspido e escarrado, que a princípio assustava a própria mãe, que não queria vê-lo zé ninguém na vida. Mal sabia ela a genialidade que o filho possuía!

Vemos a tiracolo a geração a qual o comediante fez parte (Cartola, Jorge Benjor, Alcione, Elza Soares, etc) e fica aqui um aparte: um excelente elenco negro que muitos espectadores aqui no país tem mania de esnobar por puro preconceito. Espero ver esse pessoal com mais frequência em nossas telas daqui pra frente.

Quem não conhece Mussum, seu trabalho, seu legado para a história da tv, vá correndo conhecer. Aposto que quando acabarem de assistir vão passar horas no you tube querendo mais (ah! um detalhe importante: adorei as reconstituições de alguns quadros do programa Os trapalhões. Nostalgia pura!). Já você que conhece ele de cor e salteado, que viu os programas, os filmes, comprou os discos, pelo amor de Deus, tá esperando o quê! Corre pro cinema, maluco! E aproveita pra dar uma força pra nossa sétima arte - que precisa e muito - de tempo de tela. 

Ao fim da sessão, chorei, como no dia que soube de sua morte. Ele era foda. Mais que isso: era a cara do Brasil. E se tem alguém fazendo falta hoje no país é ele. Grande Mussum! Fica em paz, meu caro! Você fez por merecer...  


sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Eles permanecem. Vivos.


Impressionante pensar que mesmo depois de mais de quatro décadas os Beatles ainda são capazes de chamar a atenção de tanta gente! 

A canção "Now and then", com auxílio da inteligência artificial na voz dos falecidos John Lennon e George Harrison, é lançada para delírio dos fãs, de hoje e de ontem. E ainda tem gente babaca e imediatista que defende que a beatlemania, na época, não foi essa coisa toda. 

John, Paul, George e Ringo conseguiram uma façanha que nenhum outro artista pop conseguiu em vida. Pararam o tempo, alucinaram multidões, tornaram-se não somente lendários como também verbetes na história da música mundial. Detalhe: num período em que a internet sequer sonhava em existir, que dirá as redes sociais. 

E eis que ressurgem agora, dois em formato digital (pois não se encontram mais entre nós) e dois mais vividos, conscientes de seus papéis dentro da indústria fonográfica, fazendo o que sabem de melhor. 

"Now and then" é, mais do que uma última canção, um resgate de uma era, o desfecho de um legado histórico e até hoje não repetido. Quando ouvi a faixa no you tube imediatamente senti vontade de ouvir de novo Sgt. Peppers, Revolver, Abbey road, a discografia completa... E acredito que muitos devem ter tido a mesma ideia. 

Não foi à toa que os rotularam na época de Fab Four. A magia não se perdeu e é visível nos olhos nostálgicos de Ringo e, principalmente, de Paul durante o clipe. Acho que deve ter passado todo um filme na cabeça deles, o quanto aquilo representou, porque teve de acabar como acabou, etc...

Sim, eles (os que partiram e os que ainda aí estão) permanecem vivos, em sua essência musical. E provam para muitos o quanto o cenário musical anda tão babaca, tão tatibitate, tão "dancinha e coreografia vazia", tão pouco ao vivo e muito playback. Tão carente deles. 

Que sirva de lição para a atual geração viciada em curtidas, compartilhamentos, viralizações, trending topics e status social. Música é mais do que isso, minha gente! Difícil é vocês entenderem isso...


terça-feira, 31 de outubro de 2023

De excluídos, eles não têm é nada


É curioso pensar na periferia e no que ela é capaz de produzir por conta própria...

Quase sempre escanteada pelo Estado e por aqueles que volta e meia se autointitulam como elite, os periféricos (tem quem os chame de marginais!) peitam o sistema, mostram suas garras e exibem uma força e uma coragem que é mérito de poucos desde que o mundo é mundo. E, claro, é sempre uma grata surpresa apreciar o legado desse trabalho. 

Fui ao MAR - Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, para conferir a exposição FUNK: Um grito de ousadia e liberdade e saí em êxtase com o que vi. O capricho, a moda, o deslumbre, o deboche intencional... Definitivamente um retrato definitivo desse grupo de pessoas que, de excluídos, não têm é nada. 

Primeiro detalhe que me ganhou: para as gerações que só conhecem o funk a partir da Furacão 2000 e do Kondzilla, enxerguem além de suas próprias zonas de conforto, pois o ritmo é bem mais do que isso. Foi um enorme prazer me deparar também com Tim Maia, James Brown, Gladys Knight e outras feras compondo o acervo. 

Calças justas, cabelo black power, bandanas multicoloridas, caras de poucos amigos, cheias de uma marra intencional, uma provocação àqueles que acreditam que eles não merecem ter o seu espaço na mídia, armas feitas de câmeras fotográficas, a rotina dos morros cariocas, caixas de som gigantescas, grafites estilosos... FUNK é, mais que um simples passeio, uma viagem alucinógena por um mundo por vezes à parte do próprio mundo. 

Em alguns momentos me peguei perdido, numa espécie de transe, tentando entender todas as referências. E me lembrei de antigas imagens que eu via nos programas de tv dos anos 1980 e 1990 na casa da minha falecida avó materna. Eram outros tempos, outro Brasil, outro mundo! E saber que essas figuras resistem no imaginário popular até hoje é não somente lúdico como visionário por si só. 

Deparei-me até com outros visitantes, caracterizados, cheios de estilo e caras e bocas. Conversei com uma delas, fã confessa de Tati Quebra-Barraco e Trinere (uma antiga paixão dos meus tempos de ouvir rádio a noite toda). O bate-papo rendeu tanto que quase perco a hora de voltar pra casa. 

Mas quer saber: deixa quieto! Tem dias que fugir da rotina chata é uma necessidade. E hoje foi um desses dias. Aproveitem. A mostra fica em cartaz até agosto de 2024. E vale cada segundo.  


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O amor sem limites


Ah o amor! E principalmente: as pessoas que o tratam de forma doentia, obsessiva...

Há mais de uma década fico me prometendo (e nunca cumpro) que lerei Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe. Fiquei sabendo da existência deste clássico através de um antigo professor da faculdade de comunicação, que era apaixonado pela trama. Mas sempre adiei a leitura. Até agora. 

E digo logo de cara: Werther virou minha percepção do mundo de cabeça para baixo, independente de seu comportamento excessivo em relação à mulher amada. 

Ele ama Lotte, representante da chamada burguesia alemã, mais que tudo na vida. Provavelmente até mais do que ama a si próprio. No entanto, Lotte prefere Albert. E o resultado disso é nosso protagonista vivendo em estado de total penúria afetiva. Mais que isso: ele é praticamente um incorrigível do amor. 

Enquanto passeia pelos salões da alta sociedade germânica e testemunha a pobreza de caráter latente naqueles cidadãos, Werther se comunica com o amigo de longa data Wilheim através de cartas regadas a frustração e niilismo. Será ele o último resquício de sanidade naquele mundo torpe? Honestamente... Acho muito difícil. 

Ele cria em meio a lágrimas de desapontamento e muita decepção um grande e elaborado ensaio sobre a vida, a natureza e a loucura (paixões eternas de Goethe, autor desta obra-prima). Sua prosa é limpa de vícios e mesmo assim sofisticada. Em outras palavras: um primor literário!

Os sofrimentos do jovem Werther foi uma façanha narrativa tamanha em seu tempo (o século XVIII) e também com o passar dos séculos, que a psiquiatria acabou por cunhar o termo "efeito werther", ou seja, "uma sensação de culpa muito grande, muitas vezes uma vergonha ou receio de falar sobre o assunto com outras pessoas". 

Críticos literários afirmam que o romance epistolar tem um caráter meio autobiográfico, tendo em vista que seu autor também foi vítima de um amor não correspondido (mais que isso: ela também se chamaria Charlotte). A publicação de Werther chegou a lhe custar, por um período de tempo, o fim da amizade com a amada. 

Polêmicas à parte, trata-se ainda de uma das maiores histórias de amor (embora um amor sem limites, logo complexo e doentio em suas intenções) da literatura ocidental, junto com Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Amor de perdição, e tantas outras...

Ao fim das pouco mais de 150 páginas, me peguei pensando: como eu pude adiar essa experiência fenomenal por tanto tempo? Eu devo realmente ser maluco. 


domingo, 22 de outubro de 2023

Terra sem alma


Scorsese de volta. E como é bom tê-lo de volta! Seu mais novo longa é a prova viva (pelo menos para bons entendedores e cinéfilos raiz) de que ainda é possível pensar o cinema como forma de arte mesmo em tempos de blockbusters excessivos baseados em quadrinhos, brinquedos, objetos comerciais, pacotes de biscoito, etc...

Assassinos da lua das flores (e fica aqui um quase ultimato: leiam, quando puderem, o livro homônimo de David Grann. Um escândalo!) nos traz um Estados Unidos que os boçais nunca vão querer enxergar, pois ser cego de umas décadas para cá virou sinônimo de virtude. Uma terra sem alma, mas que adora se disfarçar de religiosa, de "terra das oportunidades", de último resquício da ética no mundo.

A nação Osage é assassinada a torto e direito e as autoridades não estão nem aí. Ao contrário: fazem parte - direta ou indiretamente - da matança. O povo, considerado naquele período, o mais rico do país é motivo de inveja. Logo, não há lugar para inocentes. O que interessa é lucrar em cima, ficar com as terras, o direito de explorar o petróleo nelas. 

William Hale (Robert de Niro, impecável como não o vejo há bastante tempo!) sabe bem disso. Manipula seu sobrinho, Ernest Burkhart (Leonardo Dicaprio), recém chegado da guerra, com esmero e espera que ele cumpra sua parte ao casar com a Mollie (Lilly Gladstone, a força-motriz do longa). Mas não somente ele. Trata-se de uma pátria repleta de invejosos e ressentidos - na minha visão, os precursores dos chamados "pais fundadores" de hoje em dia na América, que adoram posar de honestos e cristãos acima de tudo. 

Quando o FBI, recém fundado e chefiado pelo temível J. Edgar Hoover, entra na história, o jogo muda e a narrativa expõe de forma brutal o que até então era somente o Lado B de uma nação contraditória. 

O diretor? Fala sério! É Martin Scorsese, droga! A lenda. Esperem tudo e mais um pouco: um plano-sequência escandalosamente bem feito e que praticamente me deixou sem ar, luzes, o uso do fogo como eu nunca vi em toda a minha vida, um elenco sublime, o respeito à história indígena (e nesse sentido ele toma um rumo distinto do livro, focando na cultura Osage) e um final... Ah, meus caros leitores! O final... O que foi aquilo? Só podia mesmo ser o responsável por longas eternos do cinema mundial como Touro indomável, Os bons companheiros e Táxi driver.

Em alguns momentos eu cheguei a fazer uma breve correlação entre Assassinos e Lincoln, de Steven Spielberg, mas não pela aproximação das narrativas (que em nada se assemelham) e sim pelo contexto conspiratório presente em ambas as histórias.

Scorsese fala de um ontem não tão distante assim, pois ecoa num hoje tão vivo, logo ali na esquina (que o digam os eleitores de Donald Trump, que sempre se acham mais donos da razão do que todo mundo atualmente). E nisso acerta em cheio e volta ao páreo dizendo a plenos pulmões: o cinema precisa ser mais do que meros parques de diversões. 

E ele está coberto de razão. Como sempre esteve. Obrigado, mestre! Por mais essa experiência cinematográfica magnífica. O que será de hollywood quando o senhor partir? Eu não quero estar aqui para ver isso, não!