Dentre as minhas muitas paixões particulares encontra-se, lá no topo da lista, as adaptações literárias feitas para os quadrinhos. Adoro a relação entre nossa literatura e a nona arte, principalmente quando o artista chamado para realizar o projeto é um profundo admirador da obra original. E digo isso porque nesses casos o artista engrandece ainda mais o texto-base.
Foi exatamente assim que me senti ao final da leitura (e releitura) de O pagador de promessas, obra teatral de Dias Gomes transposta para os quadrinhos por Eloar Guazzelli para a coleção Grandes clássicos em graphic novel, da editora Agir.
A história, mais do que conhecida para os fãs do teatro nacional (e que inclusive ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1962 em adaptação para o cinema dirigida por Anselmo Duarte), nos traz a saga de Zé do Burro, que atravessa a cidade com uma cruz nas costas por conta de uma promessa feita à Iansã (que na religião católica é representada por Santa Bárbara) que salvou da morte seu burro, Nicolau.
Ao chegar à igreja acompanhado da mulher se depara com a intolerância de Padre Olavo, que vê em sua promessa uma relação satânica e acredita piamente que Zé do Burro está, isso sim, tentando se passar por Jesus. Como consequência desse entrave, aparece todo tipo de oportunista querendo ou ganhar fama com o caso, ou destruir a vida do humilde pregador. Seja o jornalista tendencioso ou o cafetão que se aproveita da ingenuidade de sua mulher, são muitos os que querem lhe usar por proveitos próprios.
A chegada do Monsenhor e, posteriormente, da polícia ampliam ainda mais o clima de caos e o cerco sobre Zé do Burro. E o que resta como epílogo dessa trama insólita é o desfecho macabro.
Assim como na peça de Dias Gomes, a HQ de Eloar também mostra que o preconceito no Brasil é um caso antigo e de (quase impossível) solução. São muitos os agentes que alimentam esse ensaio sobre a cegueira religiosa. O que muda, no final das contas, é apenas o fato de que a ideologia extremista passa de geração à geração, construindo uma legião de idiotas que simplesmente não conseguem enxergar o mundo - e a sociedade - a um palmo do próprio nariz.
Os traços de Eloar, embora simples, descrevem com exatidão a trama e sua paleta de cores é irresistível. A edição ainda conta com um prefácio luxuoso do poeta Ferreira Gullar que situa a narrativa para os marinheiros de primeira viagem.
Recomendo efusivamente a leitura e, se possível, que leiam também a peça original. Além de ser um dos melhores textos da nossa dramaturgia, trata-se de um registro preciso sobre um país que não evoluiu com o passar das décadas - na verdade, não tem sequer interesse em mudar.
Procurem!!!
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