quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O ano que não começou


A princípio eu pensei em deixar uma página toda em branco seguida de um post scriptum sacana dizendo "e vocês esperavam o quê de um ano em que nada, absolutamente nada, de bom aconteceu?". Mas depois voltei atrás e me dei conta de que há, sim, muito o que dizer sobre o ano de 2020. O único problema é que não são elogios. Longe disso...

2020 não foi mole, não! Como bem diz o narrador Galvão Bueno em jogos de futebol entre Brasil e Argentina: "é teste pra cardíaco, meu amigo!" Sim, foi exatamente isso. Com pitadas de humor negro, ganância e muita, mas muita mentira. 

Como todo ano 2020 começou sabendo que precisava esperar o carnaval acabar para poder dar as caras. E ele esperou e o carnaval foi lindo, absolutamente lindo. Que o digam os frequentadores do Cordão da bola preta, do Bacalhau do batata, do Galo da madrugada e os que foram conferir os desfiles das escolas de samba no RJ e em SP, isso só para ficar no básico! A festa de Momo correu solta e o brasileiro se esbaldou. E logo a seguir... 

Pois é... O problema é o que deveria acontecer depois do carnaval. Não houve depois. Quem planejou alguma coisa teve de adiar por tempo indeterminado. Para muitos, continua adiado. O comércio fechou, a vida paralisou. Em outras palavras: chegou o Coronavírus e o Brasil bem como o resto do mundo "parou". 

Muitos estranharão o último verbo do último parágrafo em aspas, mas o nosso país é assim mesmo: só para entre aspas. E digo isso porque sempre gostamos de ser um país de moralistas sem noção, negacionistas e ignorantes. E eles fizeram a festa neste ano que, simplesmente, não começou. 

Encontro na internet um texto chamado "a era da mediocridade" e seu título nunca combinou tão bem com o que vivemos nesse Brasil de 2020. As fakes news e os memes viraram padrão, norma de conduta. Os que preferiram dizer que a pandemia era uma reles invenção para aprisionar as pessoas, tocaram o terror, agrediram, festejaram clandestinamente e abertamente até dizer chegar. A humanidade continuou sua escalada infame rumo à ignorância total. 

Aliás, falei em clandestinidade. Foi uma palavra muito em voga esse ano. Festas e eventos ilegais para todos os lados. Nem mesmo o governo federal quis oferecer números oficiais sobre a trajetória da doença. Hospitais de campanha levando uma eternidade para ficar prontos e depois serem abandonados. Os responsáveis pela gestão da cidade maravilhosa, ambos bons cristãos (palavra deles!), caíram. Um deles, preso em casa às vésperas do natal. O que fizeram para merecer isto? Honestamente... Quem é carioca de verdade, sabe, oh se sabe! 

A corrida pela vacina (é Pfizer, é Astrazeneca, é Sputnik V, é Coronavac, decidam pelo amor de Deus!), a falácia acerca da Hidrocloroquina, Donald Trump mandando seus eleitores beberem detergente, "é só uma gripezinha!", "vamos tocar a vida!", e estamos perto de 200 mil mortos. Até o videogame que virou franquia cinematográfica Resident Evil é pinto perto do que 2020 mostrou para nós. 

Isolamento social, lockdown, auxílio emergencial, máscara, álcool em gel, mercados saqueados, Amazônia pegando fogo, Amapá sem energia elétrica e refém do caos, George Floyd morto de forma bárbara nos EUA e protesto por parte da comunidade negra, ruas infestadas de manifestantes em Paris - os chamados coletes amarelos, quebra-pau em tudo quanto é lugar, Trump questionando o resultado das eleições, Joe Biden herda de seu mandato um enorme barril de pólvora e uma nação dividida, o Brexit continua ata e desata e não ata de novo, apologia à tortura... Ufa! Acabou? Que nada. É só um breve resumo da tragédia anacrônica pela qual passamos nesse ano. Que, lembrem-se!, sequer começou. 

Embora muitos prefiram dizer que 2020 é um ano para ser esquecido, enterrado, eu prefiro acreditar que foi um ano para nos repensarmos como seres humanos (algo que, claro, muitos não farão. Pelo contrário...). Tentarmos pelo menos entender o porquê de tanta estapafúrdia, tanto consumismo desmedido, tanta arrogância, tanto desrespeito, tanta vontade, enfim, de sermos melhores do que os outros, como se isso fosse pré-requisito para chegarmos a alguma espécie de nirvana. 

Enfim: estamos enlouquecendo dia a dia e não nos damos conta. E ainda por cima chamamos isso de natural. Vejo o ano de 2020 como um grande hiato, necessário para recomeçarmos, baseados em outros conceitos, mais humanos, sem tanto ostentacionismo e controvérsia. Resta saber se a humanidade vai cair na real ou continuar idolatrando a mesmice cotidiana enfadonha, calcada em likes, selfies e poses ridículas.

Agora chega, que de desgraça eu ando cheio. E chega logo 2021, por favor! Que eu já estou de saco cheio de tanta notícia ruim.  


domingo, 27 de dezembro de 2020

Fábula contemporânea


Contos de fadas e fábulas sempre me entediaram, desde moleque, por conta de seu formato repetitivo, refém de premissas que eu considerava óbvias, cansativas. E muito por causa disso naquela época - refiro-me aos meus 10, 11, 12 anos - eu escolhi as tirinhas de jornal e os comics. Eles possuíam o nível de sarcasmo e deboche que eu procurava já naquele tempo. O resultado disso: tornei-me um leitor de outsiders, de autores fora do padrão, do corriqueiro. 

Contudo, o cinema anos mais tarde me fez acreditar que era possível encontrar artistas que transformassem esse tipo de linguagem monótona (pelo menos para mim) em algo mais palatável aos meus interesses, digamos, excêntricos. E um deles que se mostrou logo de cara foi o diretor Walter Hill. Quando assisti The Warriors - os selvagens da noite numa madrugada fria no início dos anos 1990 eu simplesmente alucinei. Era provocador, reacionário e corajoso em demasia. E eu pensei comigo: esse cara entende do metiê. 

Mas eu não vim aqui para falar de The Warriors (crítica que, aliás, estou devendo aos meus leitores) e sim de Ruas de fogo, de 1984. Para mim um conto de fadas para adultos, sem toda a baboseira que acompanhava o gênero desde que o mundo é mundo. 

Acompanhamos o sequestro da jovem estrela do rock Ellen Aim (Diane Lane) pelas mãos da gangue de Raven (Willem Dafoe) durante um dos seus concertos e não há como não pensar na princesa sendo capturada por seu algoz, que certamente - se aqui fosse um livro - teria inveja de sua beleza ou do fato dela não amá-lo. E o único capaz de resgatá-la, para uma de suas fãs e irmã do herói, é o rebelde Tom Cady (Michael Paré), ex-namorado de Ellen e também ex-militar. Entretanto, ele não é um príncipe que se encaixe no estereótipo do que estamos acostumados a ver nesse segmento. 

Pelo contrário. Tom não leva desaforo pra casa, não se esconde atrás de discursos bonitos e chega a aceitar dinheiro para resgatar a moça. Ousado, eu sei... Mas como eu disse antes: é uma mudança no formato. Trata-se de um fábula contemporânea. Algo, por sinal, que consta logo no início dos créditos ("uma fábula rock n' roll"). 

Dito isto, esqueçam dragões cuspidores de fogo, casas de doces, espelhos mágicos e toda essa bobajada. O que encontraremos aqui é muito som alto, tiroteiro, pancadaria pra dar e vender, uma ajudante do príncipe meio lésbica e veterana de guerra e um produtor, Billy Fish (o atualmente sumido Rick Moranis), completamente almofadinha e viciado em sucesso. 

Querem mais? Então vão ter que ver (ou rever) esse clássico oitentista!

Dois destaques que eu não posso deixar de mencionar do longa: as caracterizações (figurinos e cenários escolhidos) e, claro, a música - sob a alcunha do mestre eterno Ry Cooder. Espera, espera... Um confissão inevitável: ouvir de novo "I can dream about you", de Dan Hartman, depois de tantos anos, é não somente um bálsamo para os ouvidos como já vale por metade do filme. 

É verdade que o roteiro, escrito a quatro mãos por Hill e Larry Gross, é bobinho toda vida se levarmos em consideração o que hollywood era capaz de fazer naquela época (que o diga o de Laços de ternura, vencedor do Oscar de melhor filme, diretor e roteiro adaptado naquele ano!). Mas ao mesmo tempo ele não era para ser, de fato, o grande centro das atenções. Em outras palavras: o público daquela época direcionava seus olhares para outras direções, digamos, mais joviais. 

Ruas de fogo é, em uma palavra simples, estiloso. Isso é que o ele está interessado em vender e, cá entre nós, fez bem. Tanto que eu estou aqui, 36 anos depois, falando dele ainda. Não, meus caros leitores, embora pareça isso não é pouco!

E pensar que hoje em dia filmes para jovens precisam ter, quase que obrigatoriamente, efeitos especiais de última geração e personagens cheios de superpoderes. Pois é... o cinema americano mudou e nem sempre a palavra mudança é um bom sinal. Mas pelo menos eu posso dizer hoje à minha sobrinha que a minha época valeu (e ainda vale) a pena.   


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Alter ego


Considero - sempre considerei - o escritor Edgar Allan Poe uma das figuras mais fascinantes (e ao mesmo tempo mórbidas) da história da literatura mundial. Não somente por seus escritos precisos, recheados de medo, mistério, tensão, loucura, sofrimento, pânico, delírio e morte, como também por sua vida desregrada, repleta de revezes e marcada por uma profunda dependência ao álcool. Era um gênio, mas um gênio torto, deficitário em alguns momentos, sempre lutando para permanecer de pé. 

E nem por isso deixou de fundar as bases, a estrutura do terror moderno. Não acredito - mesmo! - que o gênero horror pudesse existir da forma como o conhecemos hoje, sem a interferência direta dele. E que me perdoem os puristas, que adoram relegar o gênero a segundo plano, mas Poe transformou a arte de assustar numa obra-prima digna de poucos, pouquíssimos. 

Dito isto, foi delicioso, digo mais: magnífico, ler a graphic novel O gato preto em quadrinhos, projeto da editora Martin Claret, que tem como ilustradores os excelentes Diogo Henrique Oliveira e Hugo Matsubayashi, ambos fãs confessos de Drácula, de Bram Stoker. 

O gato preto, conto antológico de Poe, nos traz a história de um homem complexo, que sempre teve dificuldade de viver em sociedade e por conta disso era alvo de zombaria dos demais desde a infância. Para ele, os verdadeiros amigos do peito eram os animais de estimação. E teve muitos. Porém, nenhum atraiu mais a sua atenção do que um felino de cor negra, que vivia seguindo-o para cima e para baixo, mesmo depois que ele casou. 

Com o passar dos anos o homem desenvolve uma obsessão, torna-se quase uma espécie de alter ego (se por influência direta do convívio com o gato ou não, é assunto para intelectuais e críticos discutirem até hoje), mas um outro eu voltado à violência visceral. E sua violência se volta contra o próprio animal que o seguia. Passados dias de sua brutalidade, sua casa pega fogo e ele perde tudo. Quer dizer: a única coisa que ele não perde é a obsessão pelo animal, que parece amaldiçoá-lo. 

E quando ele encontra uma réplica de seu bicho de estimação num pub e o leva para casa - justo quando ele parecia começar a colocar a cabeça no lugar - os dias de violência regressam com força e ele chega a um extremo nunca antes vivido. E é nesse momento que fica claro para os leitores, pelo menos ficou para mim, que ele não passava de um marionete dentro de sua própria vida. 

No aspecto visual a graphic novel é um show à parte, principalmente no quesito paleta de cores. É soturno e maquiavélico, bem ao estilo do escritor, que era um mestre do sobrenatural. Aliás, saber que se trata de um trabalho feito por artistas nacionais me deixou orgulhoso de nossa produção na nona arte. Não devemos nada a mestres como Alan Moore, Steve Ditko e Carl Banks, entre tantos outros. E se os leitores tupiniquins não dão o devido valor é puro despeito ou o velho "complexo de vira-latas" vigente há séculos no país. 

Diogo Henrique diz no próprio álbum que a trilha sonora que o acompanhou durante toda a confecção do álbum foi Phillip Glass and the Kronos Quartet. Eu ouvi e atesto: é perceptível um pouco desse clima. Se vocês já ouviram alguma trilha sonora de Glass para o cinema vão entender imediatamente o que eu estou dizendo!

Ao final da leitura me pego ainda mais apaixonado do que já era por Poe e seus delírios etílicos e utópicos e vejo no trabalho da equipe (além dos ilustradores há ainda a participação de quatro mulheres talentosíssimas na idealização do projeto: Aline Napoli, Michelle Fernandes, Sara Lisa Freitas e Stephanie Ambrósio) uma grande homenagem a um artista brilhante, mas que acaba muitas vezes sendo lembrado pelos críticos e leitores mais por seu lado dark e irresponsável, o que é uma pena. 

Procurem. A leitura é rápida e de um extremo bom gosto visual. 

P.S: Ah! quase ia esquecendo... Ao final da narrativa gráfica vem o conto original de Edgar Allan Poe na íntegra. Melhor presente do que esse, impossível.


domingo, 20 de dezembro de 2020

O futuro não é realmente o problema


O tempo e essa eterna mania que temos de rotulá-lo, classificá-lo, retê-lo, dar a ele uma dimensão maior do que a suposta. Queremos mudar o tempo que as coisas - e até mesmo os seres humanos - duram. E não podemos. E isso nos entristece. Vejo nisso uma espécie de "complexo de Deus" que vive perseguindo a humanidade desde Adão e Eva. E nada fazemos para corrigir este aspecto, essa mania, essa eterna mania de querermos ser mais do que realmente podemos. 

Esta semana enfim consegui assistir o famigerado Tenet, de Christopher Nolan. O filme escolhido para a reabertura dos cinemas nos EUA pós-pandemia. Infelizmente a Covid-19 insistiu e o longa não conseguiu a projeção que ambicionava, mas deixou em minha mente uma interessante reflexão sobre o tempo e as decisões equivocadas que nós, seres humanos, volta e meia tomamos. 

Após um missão mal sucedida para conter um atentado terrorista durante um concerto, um agente é apagado dos quadros funcionais da organização para a qual trabalha e é dado a ele uma nova missão. Contudo, de concreto mesmo, as únicas coisas que esse homem precisa saber são que ele irá evitar uma terceira guerra mundial e que nada do que ele viu até então permanecerá o mesmo. Suas expectativas pessoais e profissionais serão completamente alteradas nesse novo trabalho. 

Parece simples, não é mesmo? Pois é... O problema é que o diretor é justamente o Christopher Nolan. Então preparem-se para surpresas e reviravoltas. 

Enquanto nos deparamos com uma nova tecnologia capaz de alterar completamente a percepção que temos do tempo, um Oligarca Russo disposto a rebootar o mundo e falsificações de obras de arte, o diretor nos impressiona com extraordinárias cenas de ação (que, honestamente, eu - se fosse vocês - abriria o olho, pois podem ser meras distrações para que não vejamos o real objetivo da história). 

Aliás, o próprio protagonista da história (o interessante ator John David Washington, que já havia chamado a minha atenção no ótimo Infiltrado na Klan, dirigido por Spike Lee) não tem um nome para chamar de seu. É identificado junto ao público exatamente desta forma: como o protagonista. E seus únicos reais "aliados" - é, eu sei... até esta palavra precisa estar entre aspas, pois no mundo que eles vivem, todos podem trair todos a qualquer momento - são Kat (Elizabeth Debicki), esposa chantageada do oligarca Sator (vivido por Kenneth Branagh) e Neil (Robert Pattinson), seu contato na nova organização para a qual trabalha. 

Contudo, mesmo com todas as tentativas do diretor para mostrar ao público espectador as implicâncias de tais atos inescrupulosos para o futuro da humanidade, fiquei a todo momento pensando no quanto o hoje e o que estamos fazendo de errado com o mundo atualmente é colocado em segundo plano, quando não deveria estar nessa posição. 

Vejo nisso, no problema da ganância desenfreada (e esse, para mim, é o real mote do longa-metragem) e a violência gratuita que nos atingiu em cheio nas últimas décadas e que grande parte da humanidade prefere varrer para debaixo do tapete um mal-estar recorrente da nossa civilização. Viramos criaturas melancólicas e repetitivas que adoram adiar os problemas e colocar a culpa no amanhã, no que virá. E ao mesmo tempo não fazemos nada de efetivo para melhorar o hoje. Logo, ele permanece refém das mesmas atrocidades e perigos. E eu me pergunto até quando assim será. 

Acredito piamente que Nolan teria sido mais feliz em seu projeto se direcionasse a discussão para os dias de hoje. O futuro não é realmente o problema. Pelo menos não se continuarmos de braços cruzados ad infinitum. Vivemos numa pandemia e tem gente festejando, se aglomerando, enchendo a cara. Não sabemos se estaremos vivos semana que vem e tem gente planejando as próximas cinco, seis décadas. Honestamente: parece-me uma contradição. E nesse quesito o filme tropeça. 

Mas não fiquem chateados. Há muito a se admirar em Tenet. O aprumo estético e visual que o consagrou junto aos fãs continua lá. Aproveitem. Entretanto, não consigo deixar de pensar que se trata de um filme menor e por vezes vazio dentro de sua filmografia. E isso aconteceu por um mero deslize. Nolan consegue fazer melhor do que isso.

E antes que me apedrejem nos comentários abaixo, paro por aqui. Quero que vocês, leitores, tirem suas próprias conclusões. Mas um aviso para os iniciados na obra do diretor: não acreditem em tudo que vêem e fiquem atentos a cada take. A qualquer momento sua interpretação sobre a trama pode ser desmentida ou reavaliada. 

P.S: lembrei de uma coisa agora, talvez seja viagem minha, mas... Quem assistiu a saga de James Cole em Os 12 macacos, de Terry Gilliam, vai se identificar imediatamente com este filme aqui. Caso não seja o seu caso, peço antecipadamente desculpas. É que às vezes eu devaneio mesmo. 


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O nego dito


É sempre difícil começar a falar sobre um artista que é um gênio nato, embora o próprio público do seu país natal não o reconheça muitas vezes como tal. A ele sempre acompanhou a alcunha de maldito, rótulo que ele sempre negou. Ele sempre se via - e estava absolutamente certo nesse sentido - como um cantor e compositor da música popular brasileira. Entretanto, para se fazer visto e reconhecido precisou andar na contramão da indústria fonográfica. E fez disso o seu grande lobby. 

Itamar Assumpção é desses casos musicais em que ou você se apaixona de vez pela irreverência e o talento do artista ou simplesmente o chama de exótico, excêntrico e o abandona de vez. No meu caso, embora tenha conhecido sua música tardiamente, foi amor à primeira vista. E digo mais: ele é o maior exemplo de "do it yourself" brasileiro que eu conheço. E até hoje não vi mais ninguém fazendo algo que chegasse perto da audácia dele. 

Dito isto, é preciso dizer de antemão para aqueles que lerão esta crítica: faz mais de duas semanas que eu vi a exposição sobre Itamar no MU.ITA - Museu virtual Itamar Assumpção, que estreou no dia da Consciência negra (logo, tudo a ver com o cantor) e mesmo assim adiei a decisão de escrever sobre tudo o que vi, pois acreditava que ainda não era hora, que faltava alguma coisa. E estava certo. Uma semana depois de minha visita virtual o canal Curta! exibe Daquele instante em diante, documentário sobre Itamar dirigido por Rogério Velloso em 2011.

Terminada a sessão eu tive a certeza: "eu sabia, estava mesmo faltando algo; faltava ouvi-lo falar". Pronto. agora vamos as minhas impressões. Contudo, não quero falar demais. Eu quero que aqueles que lerem este texto também conheçam o museu. Mas também não quero ser injusto com o artista e falar pouco. Ele foi, sempre sombra de dúvidas, um pioneiro em muitos sentidos. 

Dos batuques de umbigada à Lira paulistana, do reggae jamaicano a escola de samba Nenê de Vila Matilde, do G.R.U.T.A - grupo de teatro de Arapongas, em Londrina (onde encarnou um Tiradentes negro) à Milton Nascimento... São muitas as influências de Itamar. Ele era múltiplo em essência. E toda vez que eu penso na persona que ele criou no palco - e na vida - a primeira palavra que me vêm à cabeça sobre ele era performático. 

O acervo da exposição, que é gigantesca, conta com fotos, vídeos, jornais, cadernos, anotações, documentos, correspondências, objetos e indumentária. E tudo classificado década a década para não perdermos um detalhe sequer. E por falar em detalhe: há um segmento da mostra chamado Afro brasileiro puro que entrecruza a trajetória do cantor com outras importantes figuras negras políticas e artísticas, como Carolina Maria de Jesus (autora de Quarto de despejo), Panteras negras, Elza Soares, Abdias do Nascimento (criador do Teatro experimental do negro), Bob Marley, Parliament Funkadelic, Gilberto Gil, Racionais MCs, Grace Jones, Spike Lee, etc.

Porém, é inegável que pelo menos 9 de cada 10 visitantes vão querer passear pela música de Itamar. E ela está toda aqui catalogada para deleite dos fãs. Se puderem ouvir as canções enquanto passeia pelas páginas, melhor ainda. Apreciem sem moderação relíquias como os álbuns Às próprias custas S/A (1981), Sampa midnight (1985), Bicho de 7 cabeças - volume I, II e III (1993), Ataulfo Alves por Itamar Assumpção - Pra Sempre Agora (1996) e a cereja do bolo, o extraordinário Beleléu, Leléu, Eu (1980), onde criou seu alter-ego, o alucinado e alucinante nego dito.

Sempre muito bem acompanhado por suas bandas, a Isca de polícia e As orquídeas do brasil (composta exclusivamente por mulheres), Itamar conduziu sua carreira de forma independente - para mim, um de seus maiores legados - e fez de sua obra artística um caleidoscópio músico-visual. 

Ele determinava milimetricamente cada parte do processo criativo: da elaboração das capas dos discos com colagens artesanais aos figurinos inusitados, os óculos escuros, a teatralização no palco, letras complexas, o canto meio falado, cenários inusitados, afrofuturismo... Uau! E muitos até hoje se perguntam "como é que um cara do interior, que trabalhava como entregador de carnês do IPTU, conseguiu fazer tudo isso?". Em poucas palavras: Itamar foi único.

No quesito parcerias teve as mais diversas: os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé (com quem viveu numa república e dividiu as atenções na época da Vanguarda Paulistana), Jards Macalé, Tom Zé, Tetê Espíndola, Cássia Eller, os poetas da geração mimeógrafo Alice Ruiz e Paulo Leminsky, Zélia Duncan (que chegou a gravar um álbum só com músicas dele), Elke Maravilha, o percussionista Naná Vasconcelos, Luís Melodia e até a rainha do rock, Rita Lee. E em sua extrema ousadia releu até clássicos da Jovem Guarda, colocando estas composições em outro patamar. 

Assim como São Paulo, cidade pela qual se apaixonou e inseriu em muitas de suas canções, a Alemanha também se rendeu ao talento de Itamar. E ele, inclusive, cogitou a possibilidade de se mudar de vez para lá, pois acreditava que os alemães o entendiam melhor como artista do que em seu próprio país. Honestamente: eu o entendo perfeitamente. 

Somente o Câncer, em 2003, conseguiu impedir Itamar de seguir em frente. Uma pena. Fico imaginando o que ele ainda poderia nos entregar, se estivesse vivo. Mais: imagine um homem e um artista como ele no Brasil de hoje! É... Está fazendo falta. 

Ao fim de mais de duas horas assistindo e lendo um conteúdo inigualável em termos estéticos e também políticos, só tenho a agradecer tanto a Anelis, filha de Itamar, de quem partiu a ideia de tal projeto, e àqueles que fizeram de tudo para que essa nobre iniciativa saísse do papel. Se havia um artista a merecer tal honraria, pela coragem de seguir em frente, nadar contra a maré, essa pessoa era Itamar Assumpção. 

Obs: não bastasse tudo o que vi, ouvi e senti, os organizadores da mostra ainda me deixaram com um gostinho de quero mais. Preciso urgentemente encontrar Cadernos inéditos, que reúne poemas, letras de música e ideias do cantor, publicado em 2013. Será que é uma saga para encontrar?

Quer saber mais? Sim, tem tudo isso que eu meramente esbocei e muito mais em https://www.itamarassumpcao.com/. Agora faz a sua parte e vai lá!


sábado, 12 de dezembro de 2020

Escreva muito, espere pouco


Quando o diretor Orson Welles lançou o clássico Cidadão Kane em 1941 ele não fazia a menor ideia do grande fenômeno que seu filme se tornaria, mas tinha pelo menos uma certeza: a de que haviam lhe prometido o final cut, ou seja, o direito de que a versão final de seu longa seguiria ipsi litteris suas diretrizes, e as de ninguém mais. O problema dessa frase: estamos falando de hollywood e do fato de que nem sempre as coisas saem exatamente do jeito que os artistas querem. 

É muito fácil olhar a obra-prima de Welles pelo prisma de "o maior filme de todos os tempos". E se perguntarmos a, pelo menos, 8 ou 9 de cada dez críticos de cinema eles certamente confirmarão. Contudo, realizar a produção na prática foram outros quinhentos. A história por trás de Cidadão Kane daria um filme por si só e um filme dos bons. Pois bem: o genial David Ficher - mestre por trás de películas extraordinárias como Zodíaco, Clube da luta e Seven - decidiu fazer esse filme com Mank. E conseguiu desenhar de forma precisa a hollywood de antigamente para falar também da hollywood de hoje. 

E para contar essa história rebuscada ele se debruça sobre a alucinada vida do roteirista do filme, Herman Mankiewicz (Gary Oldman, em estado de graça!) e a incrível façanha que ele teve de encarar: escrever o roteiro de Cidadão Kane em míseros 60 dias. Você pode até dizer "mas para esses caras, que escrevem o tempo todo, é moleza!". Pois é... Você não conhece Mank. 

Mank é aquilo que eu costumo chamar de um velho tubarão da indústria cinematográfica. Um homem capaz de entender o sistema com extrema facilidade, jogar com ele se necessário e entregar o que for preciso dentro do prazo estabelecido. Porém, é também um homem que luta constantemente contra seus demônios internos e sua própria extinção. Cada dia é um degrau a ser suplantado em busca de sobrevivência. E eu até poderia dizer aos leitores dessa crítica que seu maior problema é o vício em álcool, mas eu não estaria fazendo jus a complexidade que envolve a rotina desse personagem. 

Do outro lado desta equação turbulenta chamada sétima arte, encontra-se um plêiade de seres irracionais e trapaceiros os mais diversos, mas não menos brilhantes. Vocês sabem tanto quanto eu (e se não sabem, deveriam saber): hollywood sempre esteve repleta de empresários antiéticos, predadores sexuais e cafajestes os mais sofisticados. E sempre foram eles que fizeram da meca do cinema o que ela é. Então, imaginem a situação de Mank tendo que conviver diariamente com homens da laia de Louis B. Mayer, David O. Selznick e, é claro, o magnata das comunicações, William Randolph Hearst. Resultado: uma labuta sem fim rumo ao paraíso (no caso, aos projetos bem sucedidos). 

Esse homem, partido moralmente e fisicamente, isola-se numa casa distante acompanhado da jovem e impulsiva Rita Alexander (Lilly Collins), capaz de escrever cada linha de pensamento que ele porventura tenha apta a ser filmada, e promete escrever um sucesso de bilheteria como nunca houve antes. Tudo que a hollywood, que ainda vive as consequências da chamada grande depressão, precisa e urgentemente. E então? Como você reagiria a toda essa pressão? Honestamente, eu já imagino até a resposta. 

Entre flashbacks que revivem a trajetória de Mankiewicz, diálogos ácidos sobre o presente e o futuro do cinema, brigas recorrentes com os empregados escalados para vigiá-lo e conversas picantes com a bela Marion Davies (Amanda Seyfried), amante de Hearst, Fincher compõe um belíssimo trabalho técnico e narrativo. Tudo no longa remete ao passado com um brilhantismo que, atualmente, somente a Netflix é capaz de nos oferecer. Som, cenários, fotografia, o preto-e-branco escandaloso de tão autêntico... Mank é simplesmente um aula de cinema para aqueles cinéfilos que andavam com saudade da verdadeira sétima arte e cansados de heróis e seus superpoderes. 

E não pensem os espectadores mais incautos que o longa foge de polêmicas. Acredito que a produção, durante toda a temporada de prêmios, dará muito o que falar por seu aspecto controverso. Embora o roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, não toque no assunto de forma direta, muitos membros da academia irão levar em consideração o livro Criando Kane, de Pauline Kael, no qual a famosa crítica de cinema detona Orson Welles, dizendo que ele nunca escreveu uma linha do roteiro do filme. Sou capaz de apostar um braço que ainda vai haver muito bate-boca daqui até a entrega do Oscar sobre esse assunto. 

Mas a principal contribuição dada pelo diretor, a meu ver, é a maneira como ele expõe a nu a hollywood dos tempos passados. Um terra de lobos competindo selvagemente e constantemente pelo último pedaço de carne disponível. E mais: é possível entender aqui, com clareza, a indústria do cinema americano que idolatrou figuras como Harvey Weinstein nos últimos anos. Em outras palavras: hollywood gosta de pilantras e eles sabem ser extremamente bem-sucedidos. Difícil mesmo é permanecer ético e coerente dentro de uma estrutura sórdida dessas...  

E como bem disse um amigo de Mank, aconselhando-o durante o processo criativo: "escreva muito, espere pouco". Realmente, não é um lugar para se viver de expectativas, mas sim cumprir agendas. 

P.S: um rápido conselho (ou dica): se puder, antes de ver o filme, assista o clássico de Orson Welles. Acreditem: vai fazer uma diferença gigantesca ao final da experiência!


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A dama incógnita


O ano que praticamente não começou chegando ao fim e eu quase me esqueço de falar do centenário da escritora Clarice Lispector. Não, isso definitivamente é inadmissível! Trata-se - pelo menos a meu ver - da maior escritora da história da literatura brasileira. E é preciso encontrar tempo para falar de alguém como Clarice. 

Primeiramente: se for encará-la, debruçar-se sobre suas páginas, venha armado (mas no bom sentido). Ela é grande adversária. Enigmática ao extremo. Muitos homens e mulheres inteligentes titubearam diante de sua prosa. E, no entanto, aqueles leitores mais prematuros, menos confiantes de si, foram os primeiros a morrer de amores por ela. Clarice era assim: não gostava daqueles que faziam questão de entendê-la, classificá-la. Com ela não tinha essa história babaca de "o que o autor quis dizer...". 

Não. Ela precisava ser sentida, seguida - mas sem tanta sisudez ou academismo -, amada. Ela era complexa, mas não por conta de uma dificuldade linguística ou gramatical, e sim por sua paixão ao narrar suas próprias histórias. 

Veio de Tchetchelnik, na Ucrânia, para o Recife com meros dois anos de idade, por conta da guerra civil que assolava a Rússia naquela época. E ainda assim, enfrentou batalhas enriquecedoras por aqui. Aos 14 mudou-se para a cidade maravilhosa e conheceu os livros. Resultado: apaixonou-se de vez. Adorava principalmente aqueles "que tinham títulos bonitos", mas não parou neles, não! Longe disso... 

Informação importantíssima: foi, desde nova, uma enorme fã de Monteiro Lobato. E fico me perguntando o que andam pensando dela, atualmente, os radicais que decidiram rotular Lobato de racista aos quatro ventos. Digo isso porque ser fã do criador do Sítio do pica-pau amarelo no Brasil de hoje dá muito pano para manga. Será que perdoaram pelo menos Clarice?

Como ficcionista ela falou muito de si, das cidades onde viveu, das angústias que passou, com seus narradores sempre na primeira pessoa... Não à toa é uma de nossas maiores representantes da literatura intimista brasileira. Aliás, intimidade é um conceito que condiz muito com ela. 

Quando comecei a lê-la, por volta de 1997, 1998, havia o papo de que sua literatura era um grande fluxo de consciência, mas eu sempre achei primário defini-la dessa forma. Ela era bem mais abrangente do que isso. Tanto que tornou até mesmo uma barata - sua personagem mais exótica, parte do romance A paixão segundo G.H - um estudo de caso interessantíssimo. Sim, Clarice era sempre tema para ser estudada ao final da leitura. 

Mostrou algumas vezes sua predileção por A maçã no escuro, que ela considerava seu livro mais bem construído, mas cá entre nós, é simplesmente impossível falar da autora e não mencionar Perto do coração selvagem, sua primeira obra, de uma extrema maturidade (embora tivesse apenas 20 anos) e A hora da estrela com sua heroína meio que às avessas Macabéa. Eu procurei o livro na época por fazer menção ao bairro de Olaria, na zona da Leopoldina, onde nasci e fui criado. E foi o suficiente para me encantar de uma vez por todas por sua prosa elegante e cheia de mistérios. 

Além da literatura precisa e irretocável, Clarice envolveu-se também com o jornalismo - é dela o brilhante Correio feminino, feito para o Correio da manhã e fruto de um convite que recebeu do cronista Rubem Braga, no qual assinou com o pseudônimo de Tereza Quadros e a coluna "só para mulheres" no jornal Diário da noite - e a diplomacia, que lhe permitiu viajar mundo afora (Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, etc). E ela soube integrar, como poucos, esse aspecto à sua obra ficcional. 

Em 1977, aos 56 anos, vitimada por um câncer de ovário, a autora nos deixa. Contudo, alguns críticos e intelectuais que analisaram sua obra em detalhes, dizem que ela continuou trabalhando até o fim. Ditava seus textos mesmo de cama. Uma mulher com tamanha personalidade não poderia simplesmente desistir.

No fundo, no fundo, chego á conclusão de que Clarice Lispector é nossa dama incógnita, um ponto de interrogação que simplesmente não se responde, muito menos espera por isso. Ela buscou no seu jeito particular, subjetivo e autobiográfico de contar histórias uma façanha ímpar. Não era uma enciclopédia, que dirá um verbete literário (embora eu veja muitos tentando transformá-la nisso nas redes sociais, fenômeno que também ocorre com o escritor Caio Fernando Abreu). E ainda sim encantou tanta gente. 

Que venha o aniversário de 200 anos, diva! (embora eu, infelizmente, não vá estar mais por aqui para apreciar isso). 

P.S: na verdade dois toques: 1) assistam a versão cinematográfica de A hora da estrela, dirigida por Suzana Amaral e 2) fiquei sabendo recentemente que o diretor Luiz Fernando Carvalho está para lançar uma adaptação de A paixão segundo G.H e quero muito saber quando ela estreia. Vocês, não?


sábado, 5 de dezembro de 2020

Isto é hollywood



Vemos o filme somente quando ele já está pronto, finalizado, montado e na maioria das vezes não nos damos conta do real trabalho que dá realizá-lo, captar verba, encontrar elenco, locações, filmá-lo, inserir trilha sonora e efeitos especiais, pós-produzí-lo, etc etc etc. E com a chegada do mercado de dvds eu passei a correr atrás dos making offs e entrevistas embutidos no menu para saber mais a respeito das produções cinematográficas. Para mim passou a ser o grande barato dentro da indústria do home video.

E o que aprendi com ela? Que precisamos, como cinéfilos, dar mais valor aqueles profissionais pau pra toda obra, os chamados "faz-tudo" dentro do set filmagem. Não fossem eles a sétima arte - e principalmente hollywood - jamais teria produzido obras-primas como Apocalipse now, Contatos imediatos do terceiro grau, Crepúsculo dos Deuses, Tubarão, Todos os homens do presidente, dentre tantos outros. 

Em Zeroville, projeto do ator e diretor James Franco, essa função é desempenhada por Vikar (interpretado pelo próprio Franco), um construtor de cenários que se muda para Nova York para ficar mais perto da meca do cinema, sua grande paixão. Ele é aquele tipo de profissional dentro da equipe de filmagem que precisa "entregar o milagre pronto" na hora que os produtores disserem que é a hora. E nem sempre isso é possível. E quando é chamado por Viking (Seth Rogen), um abutre da indústria, para editar um longa, ele percebe definitivamente o quanto que prazos são realmente datas complicadas para serem seguidas à risca. 

Não bastasse a rotina e as cobranças do instável e prepotente produtor Rondell (Will Ferrell), ele ainda por cima se apaixona pela instável Soledad (Megan Fox), uma atriz do segundo escalão que luta para criar a filha adolescente e rebelde. Moral da história: em seu íntimo, Vikar sabe que está metido numa roubada desde o início, mas é tarde demais para abandonar o barco. 

Talvez a única coisa que exerça uma paixão igual a que sente por Soledad é a devoção que ele tem pelo filme Um lugar ao sol, do diretor George Stevens e seu protagonista, o ator e galã Montgomery Clift. E é dessa mistura de sentimentos que nasce o grande conflito que irá perseguir Vikar por toda a trama, que ganha contornos sobrenaturais (em alguns momentos, confesso, desnecessários). 

O importante mesmo para o espectador é levar em consideração que Zeroville tem uma narrativa que segue a premissa "isto é hollywood", com todas as distorções e mau caratismos que a terra mais famosa do cinema é capaz de carregar em seu bojo. E desde já adianto: fiquei curioso para ler o romance homônimo do escritor Steve Erickson, que serviu de base para a realização deste projeto. O filme conseguiu plantar em mim uma semente da dúvida sobre as intenções do original. 

Para quem curte produções sobre bastidores da indústria, como A noite americana, de François Truffaut e Ed Wood, de Tim Burton - só para citar dois dos meus inúmeros favoritos - terá nesse aqui um prato cheio e alucinógeno. 

Contudo, é preciso avisar de antemão que Franco inseriu uma espécie de segunda trama um tanto confusa para mexer com os brios dos espectadores (ou talvez seja a trama principal, mas eu tenha preferido o lado backstage da história, pois adoro referências ao passado e homenagens à era de ouro de hollywood). Enfim... Estejam preparados!

Mesmo assim, embora não concorde com todas as suas escolhas criativas, reconheço uma evolução na carreira de Franco como diretor. Já havia gostado bastante de O artista do desastre, sobre a inusitada figura do cineasta Tommy Wiseau e o seu "pior filme de todos os tempos, The Room" - que ganhou até Globo de Ouro - e embarquei também neste. Pena que seus projetos pessoais sejam tão difíceis de encontrar, mesmo na internet. O rapaz já enveredou até por William Faulkner e Charles Bukowski...

No geral, fica como opção alternativa para aqueles espectadores que volta e meia cansam da mesmice exibida no circuito comercial e desejam um plano B para quando os serviços de streaming estão na entressafra. Procurem! Vale, pelo menos, um domingo à tarde.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Me dá um abraço?


Quando eles (ou elas) passam na rua, vivendo suas vidas, pagando suas próprias contas, sem depender de ninguém, há quem deboche. Há quem os diminua pelo simples prazer de fazê-lo. Há quem os chame de aberrações. O mundo está repleto de preconceituosos os mais diversos. E eles, os covardes, vivem da manutenção da desgraça alheia. E ai de quem se posicione contra os acusadores! 

Eles (ou elas), no caso, são os homossexuais. Um grupo social que sobrevive a duras penas, tendo que conflitar diariamente contra pessoas que, muitas vezes, não são exemplo de absolutamente nada. Apenas gostam de se sentir por cima das demais classes sociais. É praticamente um vício comportamental. 

Em tempos de quarentena e isolamento social na cidade maravilhosa me deparo com a possibilidade de assistir online ao espetáculo teatral Alair, do dramaturgo  Gustavo Pinheiro (autor de Relâmpago cifrado e A tropa) e, lógico, vou correndo para o youtube para conferir a montagem.

O texto - escrito em 2017 - nos traz o relato do fim da vida (praticamente uma confissão) do fotógrafo, engenheiro, filósofo e crítico de arte Alair de Oliveira Gomes, conhecido como pioneiro da arte homoerótica no Brasil. 

Vivido no palco pelo ator Edwin Luisi, Alair funde passado e presente e narra seus erros e acertos ao longo da vida. As escolhas infelizes, os romances tórridos, aventuras que não deram certo, flertes rápidos (e também perigosos), etc. Intercala a zona sul carioca com as viagens que realizou pela Europa, traçando assim um perfil coeso do comportamento homossexual masculino. 

Após assistir o espetáculo na íntegra vou ao google procurar por fragmentos de seu trabalho fotográfico. E logo de cara me deparo com um artista que, se vivo (ele faleceu em 1992), incomodaria - e muito! - o Brasil de hoje, cheio de demagogos religiosos e gente que confunde partidarismo político com fanatismo cego. 

Sua obra é provocadora ao extremo e um prato cheio para os conservadores de plantão que adoram rotular tudo o que não entendem de putaria ou alienação. 

Edwin não está sozinho no palco. É acompanhado por dois jovens atores que, na verdade, funcionam mais como corpo do que como narrativa. Ambos estão ali por conta de seus deltoides perfeitos e silhuetas impecáveis. Detalhe: há cena de nudez aberta (portanto, não recomendo para todos os públicos). É preciso ser mente aberta - ou como diz o próprio protagonista, "um libertário" - para realmente acompanhar a proposta cênica do dramaturgo. 

À medida que a apresentação vai se aproximando do fim, e quando estamos mais do que inseridos, assoberbados pela combinação de atuações e exibições de vídeos, chegam os dias amargos: as exposições que foram proibidas pela censura no período militar, o diagnóstico de câncer de próstata... A vida de Alair, como a de muitos que pertencem ao mesmo segmento que ele, não foi fácil. 

Trata-se de uma jornada dolorosa pelo árduo mundo daqueles cujo único desejo é permanecerem diferentes em meio ao discurso ditatorial do pensamento único que rege o país desde sempre. E o resultado final dessa jornada é não somente glorioso como inebriante. Para você que está à procura do verdadeiro teatro e não aguenta mais o acúmulo de comédias, stand ups e musicais que não passam de corruptelas da Broadway, eis aqui um prato cheio. 

P.S: para quem não assistiu o espetáculo ainda, clique aqui: 

https://www.youtube.com/watch?v=o9NRYt2TuZ0&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0FRK4xaKQMc6TUnmeG8ABnnZeORrlZDXto1OLwiLanb9_xnyhXE5Uh3fA


sábado, 28 de novembro de 2020

Aquela decisão que ninguém quer tomar


O aborto. Não importa quantos séculos passem e o quanto a sociedade evolua, ele sempre será um tema tabu. E digo isso não por conformismo, mas pelo desejo que a própria sociedade tem de permanecer conservadora diante dos assuntos mais espinhosos e contraditórios. Parece, na maioria dos casos, um mecanismo de defesa ou um porto seguro. Seguir a maioria acomodada à ter sua própria opinião. Entretanto, nem sempre aqueles que seguem a manada fazem na prática o que dizem no conforto de seus grupos sociais. 

Em outras palavras: conheço muita gente que é contra o aborto, mas se fosse a sua vida, seu corpo, tiraria a criança na mesma hora. E mesmo assim adora criticar a decisão dos demais. Ver Nunca, raramente, às vezes, sempre, da diretora Eliza Hittman, me deixou pensando nisso durante toda a sessão. O quanto somos hipócritas ao condenar decisões alheias, mas quando tomamos as nossas o buraco é sempre mais embaixo. 

O longa de Eliza segue a jornada de Autumn (Sidney Flanigan, em seu primeiro trabalho de atuação) que descobre estar grávida de quase quatro meses, fruto de um relacionamento abusivo, e decide fazer um aborto. Seus pais não sabem de nada e ela pede ajuda à sua prima Skylar (Talia Ryder) com quem viaja para outra cidade para interromper a gravidez. 

Antes mesmo da possível chegada de um bebê a vida de Autumn não se enquadra na categoria de "fácil" ou "bem sucedida". Ela não se sente incentivada dentro de casa, não é respeitada por nenhum dos homens com quem se relacionou e tem como chefe no trabalho um homem cafajeste, que a assedia descaradamente. Logo, como a chegada de uma criança poderia melhorar a sua vida em algum aspecto? 

Resultado: tomar aquela decisão que nenhuma mulher gostaria de tomar, mas às vezes se torna a única viável. E o caminho será espinhoso, cheio de perguntas a serem respondidas, pois há um sistema que existe para que voltemos atrás em nossas decisões. Para que não seguimos em frente, que sejamos condescendentes (como todo bom pagador de impostos!). E Autumn precisará ter muita força de vontade para chegar ao final dessa saga. 

Detalhe importantíssimo: mesmo terminada a intervenção não há garantias de que arrependimentos não surgirão a longo prazo, pois a vida não é uma ciência exata e está sempre nos colocando contra o muro, testando nossas escolhas.  

Houve um momento da história de Autumn em que me peguei pensando em Ramón Sampedro, personagem de Javier Bardem no filme Mar Adentro, de Alejandro Amenábar. A diferença é que Ramon lutava pelo direito à eutanásia e se deparou com um sistema ainda mais covarde do que o hospitalar que fez o aborto da jovem, pois precisou ir aos tribunais para ver reconhecido o seu direito à morte, na linha "meu corpo, minhas regras". 

E embora a diretora não tenha preferido um caminho ácido ou mesmo embrutecido, Nunca, raramente, às vezes, sempre se mostrou, pelo menos para mim, uma narrativa incômoda a todo momento. E me peguei pensando no quanto é difícil ser mulher em qualquer sociedade, não importa se você vive na África ou num país de primeiro mundo. 

Autumn é o retrato vivo da sociedade maculada pelo machismo extremo, que protege homens cafajestes, às vezes crias de famílias abastadas e se vê numa posição de fazer o que for necessário - mesmo que o necessário lhe custe um rótulo de miserável ou assassina por parte dessa mesma sociedade deturpada - para chegar ao dia seguinte. Nesse momento sua vida se torna um amontoado de "infelizes dias seguintes" sem a menor perspectiva de dias melhores por vir.  

E ainda tem gente hipócrita, no conforto de suas mansões, que prefere chamar essas mulheres de ressentidas, mal amadas ou vulgares...


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Dieguito


Tem dias que eu ligo o computador e fico esperando a notícia ruim vir, de sola. E em se tratando de 2020, repleto de notícias ruins e fake news, o dia hoje se superou. Mesmo. E o futebol, independente de você ser fã do jogador ou não, perdeu um de seus maiores legados. "Mas não tem jeito", dizia minha avó, "a vida quando quer, ela leva e pronto".  

Pois bem: a vida levou Diego Armando Maradona, aos 60 anos, após sofrer uma parada cardíaca em casa. Ele recentemente havia feito uma cirurgia delicada no cérebro e seu caso, é bem verdade, inspirava cuidados. No final das contas, não aguentou. O criador o chamou. 

Era difícil amar completamente Maradona, pois ele era um indivíduo complexo, à margem do sistema, rebelde por natureza. Entretanto, também era difícil detestá-lo completamente. Ele foi a tônica do que o esporte representou ao longo de sua história. Se houve alguém que fez do futebol um arte debochada e polêmica, foi ele! E vê-lo jogar era um caso à parte, mesmo que você torcesse contra. E eu torci. 

Quando seu passe melindroso para Caniggia vencer Taffarel tirou o Brasil, nas oitavas-de-final, da Copa do Mundo de 1990, houve um lado meu que não conseguiu detestá-lo, mesmo em meio às lágrimas que rolavam. Eu já havia torcido contra a Argentina no jogo de abertura da competição contra Camarões (jogo esse em que François Omam-Biyik fez a alegria de milhões de brasileiros com um gol revolucionário na história das copas), mas sabia que ela se classificaria, pois tinha Dieguito em seu escrete. E que ela tentaria o bi a qualquer custo. O bi não veio, mas foi por pouco. E nós rodamos pelo meio do caminho na mão deles.

Quatro anos antes, aliás, Maradona fez a festa no México e até hoje muitos por aqui dizem: "ele ganhou a copa sozinho". Acreditem: eu entendo quem pensa assim. O cara era foda. Dentro das quatro linhas poucos atingiram o seu nível. 

Seja no Boca Juniors, no Nápoles ou na seleção, Maradona exibiu seu estilo irreverente e suas provocações (que também fizeram história, dentro e fora de campo). Seu caso de amor e farpas com Pelé se tornou notório e alimentou a rivalidade eterna entre torcedores. E, honestamente, babaca de quem cogita a possibilidade de escolher quem foi melhor entre os dois. É caso perdido. Eram épocas diferentes e estilos diferentes. 

Mais vale a pena lembrar da Mano de Dios, o gol de mão que ele fez contra a Inglaterra em 1986 que parou o mundo. Tem quem chame o árbitro de maluco até hoje por não ter visto a ilegalidade, mas enfim... Incorporou à mística do futebol e suas distorções temporais. 

Ano passado enfim consegui assistir ao documentário Maradona by Kusturica, e me deparei com o fanatismo em seu apogeu do torcedor argentino. Maradona é, de fato, o Pelé portenho para nuestros hermanos. Há, inclusive, uma cena de fanatismo religioso numa igreja criada para exaltar o jogador. Chegam a mudar a oração da Ave Maria para incluir seu nome nela. Enfim: o futebol como rito de fé cega e apaixonada. 

Se não tivemos mais de Maradona foi porque seus exageros e os abusos envolvendo drogas não permitiram. Passarei o resto da minha vida perguntando o que ele (ainda) poderia ter feito nos campos não fosse a cocaína. Em 1994, quando o Brasil sagrou-se tetra, foi pego por uso de Efedrina e cortado e eu, confesso, fiquei na dúvida sobre a legitimidade do dopping. Acabou pagando um preço alto por seu histórico infeliz. Porém, isso não foi suficiente para macular sua história dentro de campo. 

Continuo - e continuarei eternamente - vendo-o como um gênio inconsequente, imaturo, desbocado, mas de profunda técnica e sabedoria. É... Está cada vez mais difícil, para mim, continuar assistindo futebol. Acabo por preferir os vídeos clássicos do you tube. 

Fica com Deus, Dieguito!

P.S: eu queria ser uma mosquinha agora e pousar na Bombonnera, campo do Boca Juniors, para ver o semblante dos torcedores...


sábado, 21 de novembro de 2020

Clã dos imorais


Com o passar dos anos e o convívio com o cinema do mundo todo (e não somente Hollywood, como acontecia na minha adolescência) aprendi a enxergar a sétima arte sob a ótica de dois grupos de diretores. Os primeiros são aqueles que buscam a glória, a projeção, que não titubeiam diante da obtenção do sucesso. E os do segundo grupo, meus favoritos, são os provocadores por natureza. Aqueles que não se rebaixam diante do star system ou das convenções morais de sua terra natal. Se têm que escandalizar, escandalizam; se é pra debochar, debocham sem dó. E principalmente: estão sempre um passo à frente do politicamente correto. 

Dentre os meus diretores preferidos desse grupo encontram-se figuras como John Waters (que anda sumido das telas, por sinal), Terry Gilliam, Glauber Rocha, Brian de Palma, Oliver Stone, Fernando Meirelles, Wong Kar-Wai, Quentin Tarantino, Tom Tykwer, Pedro Almodóvar, Bong Joon Ho, Alejandro González Iñárritú, Beto Brant, Roberto Rossellini, David Lynch e, claro, desde sempre, David Cronenberg. 

E no caso de Cronenberg em particular cabe ainda um adendo por toda a sua contribuição artística junto ao departamento de maquiagem (como esquecer de Scanners: sua mente pode destruir e A mosca?) e a enorme habilidade que tinha, no passado, para trabalhar com efeitos práticos, muito antes dos efeitos especiais e o CGI ditarem os rumos da indústria cinematográfica americana. 

A obra cinematográfica de Cronenberg está repleta de projetos inusitados, que me deixaram de cabelo em pé. De Videodrome - a síndrome do vídeo até Gêmeos - mórbida semelhança, não teve uma só película desse gênio sórdido que não mexeu profundamente comigo. Contudo, nenhum outro projeto dele me colocou de ponta a cabeça como Crash: estranhos prazeres. E talvez por isso nunca tenha tomado coragem de fazer uma crítica a respeito. Até agora. 

Crash pega um diretor de tv que acaba de sofrer um acidente de carro, James Ballard (James Spader, do clássico eterno Tuff Turf - o rebelde), para usá-lo como fio condutor numa jornada de autoconhecimento rumo aos EUA dos dias de hoje. Só que essa história foi contada em 1996. 

Após o acidente e a consequente internação, James - acompanhado de sua esposa Catherine (Deborah Kara Unger) - conhece Helen (Holly Hunter), Vaughan (Elias Koteas) e Gabrielle (Rosanna Arquette), uma trupe de desajustados que frequentam um grupo fascinado por acidentes automotivos. Eles se reúnem em plena madrugada para assistir à réplica de famosos acidentes que levaram à morte grandes celebridades, como o astro hollywoodiano James Dean. Mais do que isso: vivem tão intensamente a cena que parecem estar presentes no momento exato em que elas aconteceram. 

Em outras palavras: James, Catherine, Helen, Vaughan e Gabrielle compõem, na verdade, um clã dos imorais, pessoas que subvertem a própria ética com o único interesse de satisfazer seus prazeres nefandos. E nesse sentido tanto o livro homônimo de J. G. Ballard - que serviu de base para o roteiro - como a adaptação para as telas de Cronenberg são um deleite para os olhos depravados mais apaixonados. Com seu sarcasmo e ironia únicos, o diretor constrói uma mise-en-scene caótica e desesperada, um contraponto à ideia que os Estados Unidos adora fazer de si mesmo para o restante do mundo. 

Enquanto testemunhamos a destruição e o esfacelamento social diante de nossos olhos, Cronenberg ainda tem tempo de nos perturbar um pouco mais com uma trilha sonora incômoda, dessas que só serve para nos acompanhar (e confundir) quando terminamos a sessão. Podem ter certeza: a música vai ficar ecoando na sua cabeça um bom tempo depois que o filme terminar, pois o objetivo dela é exatamente este.  

Logo, o resultado final dessa equação macabra não poderia ser outro: o espectador se vê invadido por uma crônica do caos, onde os seres humanos não passam de mercadorias frágeis e fúteis, implorando por migalhas de atenção. E não se esqueçam da sexualidade de cada um dos membros do clã. Sim, aqui ela é um personagem coadjuvante importantíssimo na hora de entendermos a carência e o desespero de suas vidas. Eles parecem, a todo momento, se segurar a boias salva-vidas invisíveis, na esperança de dias melhores que nunca vêm. 

Após terminar o filme, corro para o site IMDb e me deparo com a informação de que o último longa de Cronenberg, Mapas para as estrelas, é de seis anos atrás. E fico triste. Espero sinceramente que ele não tenha se aposentado. Ainda não. Um artista brilhante desses não pode ficar sumido dos cinemas tanto tempo. Volta, David! Só mais um pouco... Os fãs imploram.

P.S: não confundir esse filme com Crash: no limite, do diretor Paul Haggis, vencedor de 3 Oscars em 2006 e que roubou descaradamente o grande prêmio da noite do extraordinário O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. A confusão seria, no mínimo, injusta.    

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

O dia da inconsciência


Hoje é dia da consciência negra. 

Correção: hoje deveria ser o dia da consciência negra, se nosso país - sempre mais afeito à intolerância, ao desrespeito, ao racismo, ao totalitarismo - tivesse de fato uma consciência. Uma consciência, digamos, humana. Ao contrário, o que vemos hoje é a morte de João Alberto Silveira Freitas, negro, soldador, 40 anos, espancado até a morte por um policial e um segurança na porta do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. Como legado esse senhor deixou mulher e uma enteada (e muitos por aqui nem disso querem saber!). 

O problema, entretanto, é sempre mais antigo do que isso, do que a violência atual, a última corrida. Afinal de contas, muitos já não se lembram mais do rapaz estrangulado por um segurança do supermercado Extra. Alguns até dirão: "ah, isso já foi... é passado, não vende nem jornal mais!". Não, não foi. É. Continua sendo. Faz parte do DNA dessa pátria contraditória onde os nossos próprios governantes atuais alegam "não haver racismo no Brasil". 

Já houve um tempo em que era simples dizer que negro, aqui, era caso de polícia. Hoje em dia é pior: é um caso grave, histórico, antropológico, com profundas raízes em nossa história colonial. Deturpa-se a história nacional como nunca antes na história desse país. Intelectuais brilhantes como Laurentino Gomes viram alvo de boçais e ignorantes que querem impor a sua verdade como única a qualquer preço. E em meio a todo esse clima de guerra, de desrespeito e alienação, sobra o quê para festejar? Pois é... Sobreviver, quando se pertence à etnia negra, passou de arte à sacrifício. 

Numa igreja na Glória uma missa em homenagem ao dia da consciência negra é cancelada por ameaças oriundas de setores católicos à Arquidiocese. Sim, não são apenas os evangélicos o problema do momento. O problema é escolher um caminho, uma fé, uma sexualidade diferente da deles. O problema é ter "outra cor". 

Hoje deveria ser um dia para celebrarmos Carolina Maria de Jesus, do extraordinário Quarto de despejo; de ovacionarmos o geógrafo Milton Santos; de engrandecermos figuras como o ator, poeta e dramaturgo Abdias do Nascimento - fundador do Teatro Experimental do Negro - e o ator e cineasta Zózimo Bulbul; de lembrarmos, mais do que nunca, de divas eternas como Ruth de Souza e Zezé Motta; de não esquecermos, sob nenhuma hipótese, do atleta olímpico João do Pulo, e tantos outros que a história oficial costuma varrer para debaixo do tapete o tempo todo.  

E para quem quiser ter só uma pequena noção do descaso que é cometido com a população negra brasileira, procurem urgentemente por A negação do brasil: o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo (há também uma versão em documentário, de 2000). E eu disse "uma pequena noção", pois o caso - já disse antes - é grave.

Mas não celebramos nada disso. Pelo contrário. Não passamos de ruído e incompetência. De achismo e arrogância. De negação à tudo, à ciência, à ética, aos valores, até mesmo à própria vida. Estamos, na verdade, cantando "perfeição", música de Renato Russo para o Legião Urbana que logo na abertura expurga os males desse país anunciando: 

Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação... 

E ainda assim há quem gargalhe, quem desdenhe, quem chame o racismo só de estrutural, quem o negue, com unhas e dentes. Já viram o presidente da Fundação Palmares? Eu tenho um vizinho que me disse outro dia que preferia que ele fosse branco, que talvez desse certo. Detalhe: meu vizinho é mulato.  "Se há algo perto do fundo do poço no Brasil é a questão do negro", escrevi dois anos atrás na minha timeline no facebook. E isso precisa parar agora. Mas como? 

Hoje, na verdade, se pararmos para pensar, é o dia da inconsciência, seja ela branca, negra, indígena, asiática, judaica, etc etc etc. E a grande maioria do povo não está nem aí, porque se acostumou ao que existe de pior, já está vacinado diante da barbárie e da intolerância, ou simplesmente "porque não é comigo". 

E aí? Comemorar o quê mesmo, no fim das contas? A resistência, claro! Porque desistir nunca foi opção pra ninguém, que dirá pra quem foi massacrado a vida inteira.


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Novembro negro


Mais uma vez a história se repete. No Brasil, a ignorância, o desleixo e as histórias macabras sempre se repetem numa sucessão infinita de mal estares da civilização...

E essa história em particular parece um daqueles dramas que o cineasta Ingmar Bergman fazia como ninguém só para nos deixar de cabelo em pé ao final da sessão. E eu, que sou calvo, me preocupo logo em perder os últimos fios. 

Mas vamos logo ao assunto, que é o que interessa aqui:

Que tristeza tudo isso que está acontecendo no Amapá nos últimos 17 dias! Prova de que nada aprendemos, nunca. com as recentes tragédias de Brumadinho - e o descaso da Vale do Rio doce -, o incêndio no Ninho do Urubu, CT de treinamento do Clube de Regatas Flamengo e o acidente aéreo que levou à morte os jogadores do Chapecoense. 

Em outras palavras (e como bem disse certa comentarista da CNN Brasil poucas horas atrás quando mencionava o caso): entram governantes, saem governantes, mudam propostas e nos vemos sempre diante da mesma proposta. No caso, o descaso. E eles, os donos do poder, continuam rindo da nossa cara e se reelegendo ad aeternum. 

Não bastasse o calor atroz no norte do país, que deve ter aumentado em tempos de incêndios na Amazônia, ainda por cima pessoas dignas lutam para colocar o feijão e o arroz na mesa, improvisando do jeito que dá, pois só podem mesmo contar com a luz do sol e nada mais. 

Ninguém dorme à noite. pois a tarefa é hercúlea e para corajosos do mais alto grau - as crianças que o digam! -; e aparelhos eletrodomésticos queimam de tanto liga e desliga e tanta incerteza. Pior: grande parcela da população vive em regime de extrema pobreza, quase sem eira nem beira. Logo, precisa dizer mais alguma coisa ou está implícito na tragédia cotidiana? 

Peçam aos moradores para que eles vão ao supermercado mais próximo. Perguntem-lhes sobre o teor da água que estão bebendo. Em suma: perguntem a esses sobreviventes "como vai indo a vida". Provavelmente a resposta será um misto de Mad Max com o romance Vidas secas, de Graciliano Ramos. Sim, eu sei... É trágico. 

Um agravante para piorar ainda mais o que já é ruim na essência do problema: um juiz decretou a demissão das diretorias da Aneel e da ONS, responsáveis por "tentar" resolver o problema o mais rápido possível. De concreto mesmo nem a causa da tragédia. Há quem diga que tudo começou com um incêndio na principal subestação do Estado. E eu digo de concreto nada, pois os fatos - como sempre - estão "sendo apurados" (e é justamente dessa frase que eu sempre tenho medo no país). 

E enquanto o milagre não dá as caras, sobra ao povo o rodízio de energia (que me fez lembrar aqui no RJ aquela história do racionamento energético por causa da falta de água nas estações de tratamento, lembra? E a solução do governo, com as bandeiras vermelhas, amarelas e verdes, então? Que Deus nos acuda!)

É... 2020 cada vez mais se torna um ano histórico no pior sentido do termo. O ano que não começou e só deixou cicatrizes amargas e indeléveis por onde passou e continua passando. Sim, o ano ainda não acabou, não! Ou seja: vem mais por aí. Logo, o medo continuará por mais 40 dias. 

E lembram do "de concreto mesmo?". Então... Chego à conclusão de que em 2021 vai ter muito autor - de ficção e não-ficção - escrevendo sobre esse ano que nunca deveria ter começado e o que ele fez conosco. Podem me cobrar, quem quiser.


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Os diferentes da história


Já faz um tempo que eu quero escrever um texto sobre o mundo nerd, mas não encontrava um mote ou mesmo a disposição necessária para tanto. E digo isso porque o nerdismo, meus caros amigos e leitores, é um caso sério. Pode até parecer para muitos tratar-se de uma grupo de pessoas bobalhonas, fanáticas, infantilizadas, que não vivem no mundo real, mas acreditem: não é bem assim.

Os nerds são vistos por onde passam como alucinados ou excêntricos ou pessoas que, simplesmente, "não tem mais o que fazer da vida". E nos últimos anos a indústria cultural andou associando eles a conceitos e valores que, cá entre nós, não condizem com a cultura que eles representam. 

Nos meus tempos de colégio (leia-se: segundo grau) havia a expressão CDF para aqueles que estudavam demais e essa expressão se tornou meio que precursora do mundo nerd. Hoje, eles podem até ser mais descolados e gerar o interesse de belas mulheres, mas no geral o conceito permanece. Continuo vendo o nerd como aquela pessoa obcecada por conhecimento, que não se basta com uma mera opinião ou informação na internet. Não, o nerd corre atrás, fuça, bagunça o coreto, desconstrói o que aprendeu e procura de novo e de novo e mais uma vez. 

Em suma: trata-se de um indivíduo em eterno status de insatisfação (e, muitas vezes, se orgulha disso!).

E nesse sentido foi extremamente gratificante ler Enciclonérdia: almanaque da cultura nerd, da dupla Luís Flávio Fernandes e Rosana Rios. Ele, um geek por natureza (você não sabe o que significa geek? Honestamente... Você está lendo o texto errado!) e ela, uma autora reconhecida de literatura fantástica e infanto-juvenil (os americanos talvez prefiram o termo young adults). E dessa junção a priori estranha nasceu um grande manual para entendermos o básico desse universo. Sim, eu disse o básico, pois o mundo nerd é vasto e inesgotável. 

E a dupla abre o volume já categorizando tudo aquilo que os leitores mais apaixonados do gênero irão encontrar nas páginas seguintes: brinquedos, desenhos animados, ciência e tecnologia, datas comemorativas, eventos nerds, gadgets, fã-clubes e comunidades, filmes, frases nerds, hqs, nerds famosos, seriados de televisão, etc, etc e muito, mas muito etc...

O livro mexeu até mesmo com minha deficiência em física e ciência em geral, que me acompanha desde os tempos de ensino fundamental (já devo ter dito isso em outros textos que escrevi, mas não custa nada repetir: sempre fui de humanas, minha praia mesmo era português, literatura, história e campos afins). E confesso que fiquei meio perdido quando me deparei com verbetes como wormhole, paradoxo do espaço-tempo e efeito doppler, entre outros. 

Mas, ao mesmo tempo, foi importante também ir fuçar um pouco mais sobre o assunto na internet. Aliás, recomendo a leitura em versão online para que vocês acompanhem o livro com o google, no mínimo, aberto. 

E afora os deslizes científicos de minha parte, o restante da obra é um deleite para fanáticos do gênero. É possível encontrar um  pouco de tudo no almanaque: acelerador de partículas, action figures, adaptações de hqs para cinema, albuns de figurinhas, almanaques, animes e mangás, Área 51, Arquivo X, astronomia, super-heróis, Big bang, Blade Runner, calculadora, campus party, celular, computação gráfica, colecionismo, computadores, convenções, cosplays, corrida espacial, cyberpunk, dinossauros, dna, esperanto, extraterrestres, feiras medievais, filosofia, Bill Gates, google, gravidade, holodeck, holografia, internet, jedis, Steve Jobs, jogos de tabuleiro, lego, literatura fantástica, Microsoft, mitologia, monstros, mutação, realidade virtual, rede sociais, RPG, teletransporte, teoria da relatividade, universos paralelos, viagem no tempo, videogames, wikipédia, world wide web, xadrez, you tube, zumbis, ufa!, e muito mais.

Ao final da leitura, cansado mas repleto de novos conhecimentos, entendi porque os nerds incomodam tanto. Porque eles são os diferentes da história e escolheram ser isso. Escolheram não se submeter a uma bolha ideológica ou a algum tipo de algema social fabricada pelo modelo político a, a religião b ou a cultura c. Eles resolveram trilhar seu próprio caminho, fazer suas próprias escolhas, emitir sua própria opinião. E isso, num mundo castrador, como esse oferecido pelo novato século XXI, pode não parecer, mas é muita coisa!

Eu custei a me entender como nerd. Acreditei durante anos que não possuía a habilidade necessária ou tinha o tempo disponível para me tornar mais um membro do clã. Estava enganado. Na verdade, eu acabei me tornando mais nerd do que pensava. E isso não é nada mal. Não mesmo. 

Pois qualquer pessoa hoje em dia que se proponha a decidir a sua própria vida ao invés de seguir padrões e dogmas alienantes, acreditem!, está na vanguarda da sociedade. E não importa o quanto lhes chamem de infantis ou inúteis para o "progresso da humanidade", eles continuarão seguindo em frente, incomodados e sedentos por informação e conhecimento.

Para saber mais sobre o livro e o assunto, acesse o site http://enciclonerdia.com.br/


sábado, 14 de novembro de 2020

American vertigo


A sétima arte realmente é insana e cruel, às vezes... Vejam por exemplo o caso abaixo:

Juntem um filme-homenagem aos cinemas de segundo escalão que forneciam como único entretenimento produções baratas, arranhadas, com atuações viscerais, ruídos em excessos, falhas na trilha sonora e na coloração da tela e um diretor cuja mente tresloucada e seu lado pesquisador fanático por temáticas as mais inusitadas é capaz de qualquer coisa. 

Resultado: Um projeto autoral animalesco (Peraí... autoral? Feito em plena era de crise dos estúdios hollywoodianos quando a expressão risco zero - ou o que quer que isso significasse - virava clichê barato na língua de produtores, diretores e outros chefões das principais companhias?).

Assim é Grindhouse, um projeto a quatro mãos realizado pela dupla Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, a quem poucos realmente assistiram juntos no mesmo rolo nos cinemas, seja por incompetência da empresa distribuidora, seja por preconceito puro. Passados dois anos de seu lançamento na versão integral, À prova de morte, a metade tarantinesca, deu as caras mostrando a face cínica de seu realizador, um profissional que nunca escondeu ao longo da carreira o apetite pelo diferente e o chocante.

A grande marca pessoal de Tarantino está lá: a capacidade de transformar seus protagonistas em alter egos de sua própria - e irracional, que fique bem claro! - psique. E no caso de Stuntman Mike (Kurt Russell), o dublê fracassado que sai às ruas, furioso (mas sem perder o sorriso sedutor e aberto), atrás de suas vítimas inocentes, isso ainda fica mais evidente. Provavelmente é uma de suas criações mais autobiográficas, mostrando abertamente reflexos de suas influências construídas ao longo da carreira, como os debochados e subversivos Enzo Castellari e Russ Meyer, pais de uma - podemos assim chamar - sétima arte provocadora, insultante.

Como pano de fundo a toda essa agressividade visual, e eis o mais interessante de toda essa viagem tarantiniana, o cineasta constrói uma exuberante enciclopédia da falta de moral do mundo americano - algo já mostrado anteriormente em Pulp fiction -, onde todas as obsessões (o fascínio erótico pelas cheerleaders, eternas e rebolativas líderes de torcida; a lap dance, versão minimalista dos shows de striptease que alucinam os becos mais inóspitos das principais cidades americanas; a sensual apresentadora do programa de rádio a quem todos querem saber se o corpo, a silhueta, é tão sensacional quanto a voz que ouvem diariamente...) estão escancaradas. 

E que não venham os leitores desta crítica me dizer que nunca se pegaram pensando sobre a dona de certa voz sensual de alguma rádio carioca! "Como será que ela é ao vivo e a cores?", numa hora dessas é uma pergunta mais do que óbvia, isso fora os desejos de consumo (a bolsa da Prada, o carro dos sonhos, etc) e fanatismos que fazem parte da ordem do dia para servir de "inspiração" à saga contumaz desse road killer.

À prova de morte é amoral, sim, e em nenhum momento nega isso. E Tarantino não alivia o espectador em momento algum quando o assunto é exacerbar a sua (ou do personagem, como preferir interpretar!) carnificina rodoviária. 

Se havia espaço, naquela época, para cinema como esse em tempos de globalização e de investimentos no óbvio, fadado a quebra de recordes e bilheterias? Não faço a menor ideia. O que sei de fato, passadas as quase duas horas de projeção, é que se trata de um filme mais do que necessário para entendermos o ser humano da contemporaneidade e suas distorções comportamentais. Disso não há a menor dúvida. 

Se por um lado você pensa "Putz! Esse filme é nojento, é atroz, é misógino até a medula", por outro fica clara a noção de que a humanidade realmente passou dos limites em muitas das decisões que tomou nas últimas décadas. E não há nada de cafajeste em deixar isso claro para o público. Não vejo essa abordagem como politicamente incorreta, pois certas vísceras e deslizes precisam ser mostradas, doa a quem doer.

Em suma: estamos diante da vertigem americana, aquilo que nossos irmãos da terra do Tio Sam sempre adoraram varrer para debaixo do tapete (e continuam varrendo até hoje, na maior cara de pau!). E ver toda essa morbidez iluminada pelo sarcasmo e o deboche de Mr. Tarantino não tem preço. 

Eu sei, eu sei... Se você nunca viu À prova de morte, deve estar pensando: onde é que eu encontro essa relíquia? E caso já tenha visto, talvez tenha se pego dizendo a si próprio: eu deixei passar alguma coisa quando vi anteriormente. Preciso ver de novo, agora! Então aproveite a pandemia e o tempo livre. Você não vai se arrepender. 

P.S (há tempos eu não escrevia um desses): eu nunca mais vi nada, nem no cinema nem em casa, com a atriz Rose McGowan. Por onde anda essa moça?