quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O nego dito


É sempre difícil começar a falar sobre um artista que é um gênio nato, embora o próprio público do seu país natal não o reconheça muitas vezes como tal. A ele sempre acompanhou a alcunha de maldito, rótulo que ele sempre negou. Ele sempre se via - e estava absolutamente certo nesse sentido - como um cantor e compositor da música popular brasileira. Entretanto, para se fazer visto e reconhecido precisou andar na contramão da indústria fonográfica. E fez disso o seu grande lobby. 

Itamar Assumpção é desses casos musicais em que ou você se apaixona de vez pela irreverência e o talento do artista ou simplesmente o chama de exótico, excêntrico e o abandona de vez. No meu caso, embora tenha conhecido sua música tardiamente, foi amor à primeira vista. E digo mais: ele é o maior exemplo de "do it yourself" brasileiro que eu conheço. E até hoje não vi mais ninguém fazendo algo que chegasse perto da audácia dele. 

Dito isto, é preciso dizer de antemão para aqueles que lerão esta crítica: faz mais de duas semanas que eu vi a exposição sobre Itamar no MU.ITA - Museu virtual Itamar Assumpção, que estreou no dia da Consciência negra (logo, tudo a ver com o cantor) e mesmo assim adiei a decisão de escrever sobre tudo o que vi, pois acreditava que ainda não era hora, que faltava alguma coisa. E estava certo. Uma semana depois de minha visita virtual o canal Curta! exibe Daquele instante em diante, documentário sobre Itamar dirigido por Rogério Velloso em 2011.

Terminada a sessão eu tive a certeza: "eu sabia, estava mesmo faltando algo; faltava ouvi-lo falar". Pronto. agora vamos as minhas impressões. Contudo, não quero falar demais. Eu quero que aqueles que lerem este texto também conheçam o museu. Mas também não quero ser injusto com o artista e falar pouco. Ele foi, sempre sombra de dúvidas, um pioneiro em muitos sentidos. 

Dos batuques de umbigada à Lira paulistana, do reggae jamaicano a escola de samba Nenê de Vila Matilde, do G.R.U.T.A - grupo de teatro de Arapongas, em Londrina (onde encarnou um Tiradentes negro) à Milton Nascimento... São muitas as influências de Itamar. Ele era múltiplo em essência. E toda vez que eu penso na persona que ele criou no palco - e na vida - a primeira palavra que me vêm à cabeça sobre ele era performático. 

O acervo da exposição, que é gigantesca, conta com fotos, vídeos, jornais, cadernos, anotações, documentos, correspondências, objetos e indumentária. E tudo classificado década a década para não perdermos um detalhe sequer. E por falar em detalhe: há um segmento da mostra chamado Afro brasileiro puro que entrecruza a trajetória do cantor com outras importantes figuras negras políticas e artísticas, como Carolina Maria de Jesus (autora de Quarto de despejo), Panteras negras, Elza Soares, Abdias do Nascimento (criador do Teatro experimental do negro), Bob Marley, Parliament Funkadelic, Gilberto Gil, Racionais MCs, Grace Jones, Spike Lee, etc.

Porém, é inegável que pelo menos 9 de cada 10 visitantes vão querer passear pela música de Itamar. E ela está toda aqui catalogada para deleite dos fãs. Se puderem ouvir as canções enquanto passeia pelas páginas, melhor ainda. Apreciem sem moderação relíquias como os álbuns Às próprias custas S/A (1981), Sampa midnight (1985), Bicho de 7 cabeças - volume I, II e III (1993), Ataulfo Alves por Itamar Assumpção - Pra Sempre Agora (1996) e a cereja do bolo, o extraordinário Beleléu, Leléu, Eu (1980), onde criou seu alter-ego, o alucinado e alucinante nego dito.

Sempre muito bem acompanhado por suas bandas, a Isca de polícia e As orquídeas do brasil (composta exclusivamente por mulheres), Itamar conduziu sua carreira de forma independente - para mim, um de seus maiores legados - e fez de sua obra artística um caleidoscópio músico-visual. 

Ele determinava milimetricamente cada parte do processo criativo: da elaboração das capas dos discos com colagens artesanais aos figurinos inusitados, os óculos escuros, a teatralização no palco, letras complexas, o canto meio falado, cenários inusitados, afrofuturismo... Uau! E muitos até hoje se perguntam "como é que um cara do interior, que trabalhava como entregador de carnês do IPTU, conseguiu fazer tudo isso?". Em poucas palavras: Itamar foi único.

No quesito parcerias teve as mais diversas: os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé (com quem viveu numa república e dividiu as atenções na época da Vanguarda Paulistana), Jards Macalé, Tom Zé, Tetê Espíndola, Cássia Eller, os poetas da geração mimeógrafo Alice Ruiz e Paulo Leminsky, Zélia Duncan (que chegou a gravar um álbum só com músicas dele), Elke Maravilha, o percussionista Naná Vasconcelos, Luís Melodia e até a rainha do rock, Rita Lee. E em sua extrema ousadia releu até clássicos da Jovem Guarda, colocando estas composições em outro patamar. 

Assim como São Paulo, cidade pela qual se apaixonou e inseriu em muitas de suas canções, a Alemanha também se rendeu ao talento de Itamar. E ele, inclusive, cogitou a possibilidade de se mudar de vez para lá, pois acreditava que os alemães o entendiam melhor como artista do que em seu próprio país. Honestamente: eu o entendo perfeitamente. 

Somente o Câncer, em 2003, conseguiu impedir Itamar de seguir em frente. Uma pena. Fico imaginando o que ele ainda poderia nos entregar, se estivesse vivo. Mais: imagine um homem e um artista como ele no Brasil de hoje! É... Está fazendo falta. 

Ao fim de mais de duas horas assistindo e lendo um conteúdo inigualável em termos estéticos e também políticos, só tenho a agradecer tanto a Anelis, filha de Itamar, de quem partiu a ideia de tal projeto, e àqueles que fizeram de tudo para que essa nobre iniciativa saísse do papel. Se havia um artista a merecer tal honraria, pela coragem de seguir em frente, nadar contra a maré, essa pessoa era Itamar Assumpção. 

Obs: não bastasse tudo o que vi, ouvi e senti, os organizadores da mostra ainda me deixaram com um gostinho de quero mais. Preciso urgentemente encontrar Cadernos inéditos, que reúne poemas, letras de música e ideias do cantor, publicado em 2013. Será que é uma saga para encontrar?

Quer saber mais? Sim, tem tudo isso que eu meramente esbocei e muito mais em https://www.itamarassumpcao.com/. Agora faz a sua parte e vai lá!


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