quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Alter ego


Considero - sempre considerei - o escritor Edgar Allan Poe uma das figuras mais fascinantes (e ao mesmo tempo mórbidas) da história da literatura mundial. Não somente por seus escritos precisos, recheados de medo, mistério, tensão, loucura, sofrimento, pânico, delírio e morte, como também por sua vida desregrada, repleta de revezes e marcada por uma profunda dependência ao álcool. Era um gênio, mas um gênio torto, deficitário em alguns momentos, sempre lutando para permanecer de pé. 

E nem por isso deixou de fundar as bases, a estrutura do terror moderno. Não acredito - mesmo! - que o gênero horror pudesse existir da forma como o conhecemos hoje, sem a interferência direta dele. E que me perdoem os puristas, que adoram relegar o gênero a segundo plano, mas Poe transformou a arte de assustar numa obra-prima digna de poucos, pouquíssimos. 

Dito isto, foi delicioso, digo mais: magnífico, ler a graphic novel O gato preto em quadrinhos, projeto da editora Martin Claret, que tem como ilustradores os excelentes Diogo Henrique Oliveira e Hugo Matsubayashi, ambos fãs confessos de Drácula, de Bram Stoker. 

O gato preto, conto antológico de Poe, nos traz a história de um homem complexo, que sempre teve dificuldade de viver em sociedade e por conta disso era alvo de zombaria dos demais desde a infância. Para ele, os verdadeiros amigos do peito eram os animais de estimação. E teve muitos. Porém, nenhum atraiu mais a sua atenção do que um felino de cor negra, que vivia seguindo-o para cima e para baixo, mesmo depois que ele casou. 

Com o passar dos anos o homem desenvolve uma obsessão, torna-se quase uma espécie de alter ego (se por influência direta do convívio com o gato ou não, é assunto para intelectuais e críticos discutirem até hoje), mas um outro eu voltado à violência visceral. E sua violência se volta contra o próprio animal que o seguia. Passados dias de sua brutalidade, sua casa pega fogo e ele perde tudo. Quer dizer: a única coisa que ele não perde é a obsessão pelo animal, que parece amaldiçoá-lo. 

E quando ele encontra uma réplica de seu bicho de estimação num pub e o leva para casa - justo quando ele parecia começar a colocar a cabeça no lugar - os dias de violência regressam com força e ele chega a um extremo nunca antes vivido. E é nesse momento que fica claro para os leitores, pelo menos ficou para mim, que ele não passava de um marionete dentro de sua própria vida. 

No aspecto visual a graphic novel é um show à parte, principalmente no quesito paleta de cores. É soturno e maquiavélico, bem ao estilo do escritor, que era um mestre do sobrenatural. Aliás, saber que se trata de um trabalho feito por artistas nacionais me deixou orgulhoso de nossa produção na nona arte. Não devemos nada a mestres como Alan Moore, Steve Ditko e Carl Banks, entre tantos outros. E se os leitores tupiniquins não dão o devido valor é puro despeito ou o velho "complexo de vira-latas" vigente há séculos no país. 

Diogo Henrique diz no próprio álbum que a trilha sonora que o acompanhou durante toda a confecção do álbum foi Phillip Glass and the Kronos Quartet. Eu ouvi e atesto: é perceptível um pouco desse clima. Se vocês já ouviram alguma trilha sonora de Glass para o cinema vão entender imediatamente o que eu estou dizendo!

Ao final da leitura me pego ainda mais apaixonado do que já era por Poe e seus delírios etílicos e utópicos e vejo no trabalho da equipe (além dos ilustradores há ainda a participação de quatro mulheres talentosíssimas na idealização do projeto: Aline Napoli, Michelle Fernandes, Sara Lisa Freitas e Stephanie Ambrósio) uma grande homenagem a um artista brilhante, mas que acaba muitas vezes sendo lembrado pelos críticos e leitores mais por seu lado dark e irresponsável, o que é uma pena. 

Procurem. A leitura é rápida e de um extremo bom gosto visual. 

P.S: Ah! quase ia esquecendo... Ao final da narrativa gráfica vem o conto original de Edgar Allan Poe na íntegra. Melhor presente do que esse, impossível.


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