Quando o diretor Orson Welles lançou o clássico Cidadão Kane em 1941 ele não fazia a menor ideia do grande fenômeno que seu filme se tornaria, mas tinha pelo menos uma certeza: a de que haviam lhe prometido o final cut, ou seja, o direito de que a versão final de seu longa seguiria ipsi litteris suas diretrizes, e as de ninguém mais. O problema dessa frase: estamos falando de hollywood e do fato de que nem sempre as coisas saem exatamente do jeito que os artistas querem.
É muito fácil olhar a obra-prima de Welles pelo prisma de "o maior filme de todos os tempos". E se perguntarmos a, pelo menos, 8 ou 9 de cada dez críticos de cinema eles certamente confirmarão. Contudo, realizar a produção na prática foram outros quinhentos. A história por trás de Cidadão Kane daria um filme por si só e um filme dos bons. Pois bem: o genial David Ficher - mestre por trás de películas extraordinárias como Zodíaco, Clube da luta e Seven - decidiu fazer esse filme com Mank. E conseguiu desenhar de forma precisa a hollywood de antigamente para falar também da hollywood de hoje.
E para contar essa história rebuscada ele se debruça sobre a alucinada vida do roteirista do filme, Herman Mankiewicz (Gary Oldman, em estado de graça!) e a incrível façanha que ele teve de encarar: escrever o roteiro de Cidadão Kane em míseros 60 dias. Você pode até dizer "mas para esses caras, que escrevem o tempo todo, é moleza!". Pois é... Você não conhece Mank.
Mank é aquilo que eu costumo chamar de um velho tubarão da indústria cinematográfica. Um homem capaz de entender o sistema com extrema facilidade, jogar com ele se necessário e entregar o que for preciso dentro do prazo estabelecido. Porém, é também um homem que luta constantemente contra seus demônios internos e sua própria extinção. Cada dia é um degrau a ser suplantado em busca de sobrevivência. E eu até poderia dizer aos leitores dessa crítica que seu maior problema é o vício em álcool, mas eu não estaria fazendo jus a complexidade que envolve a rotina desse personagem.
Do outro lado desta equação turbulenta chamada sétima arte, encontra-se um plêiade de seres irracionais e trapaceiros os mais diversos, mas não menos brilhantes. Vocês sabem tanto quanto eu (e se não sabem, deveriam saber): hollywood sempre esteve repleta de empresários antiéticos, predadores sexuais e cafajestes os mais sofisticados. E sempre foram eles que fizeram da meca do cinema o que ela é. Então, imaginem a situação de Mank tendo que conviver diariamente com homens da laia de Louis B. Mayer, David O. Selznick e, é claro, o magnata das comunicações, William Randolph Hearst. Resultado: uma labuta sem fim rumo ao paraíso (no caso, aos projetos bem sucedidos).
Esse homem, partido moralmente e fisicamente, isola-se numa casa distante acompanhado da jovem e impulsiva Rita Alexander (Lilly Collins), capaz de escrever cada linha de pensamento que ele porventura tenha apta a ser filmada, e promete escrever um sucesso de bilheteria como nunca houve antes. Tudo que a hollywood, que ainda vive as consequências da chamada grande depressão, precisa e urgentemente. E então? Como você reagiria a toda essa pressão? Honestamente, eu já imagino até a resposta.
Entre flashbacks que revivem a trajetória de Mankiewicz, diálogos ácidos sobre o presente e o futuro do cinema, brigas recorrentes com os empregados escalados para vigiá-lo e conversas picantes com a bela Marion Davies (Amanda Seyfried), amante de Hearst, Fincher compõe um belíssimo trabalho técnico e narrativo. Tudo no longa remete ao passado com um brilhantismo que, atualmente, somente a Netflix é capaz de nos oferecer. Som, cenários, fotografia, o preto-e-branco escandaloso de tão autêntico... Mank é simplesmente um aula de cinema para aqueles cinéfilos que andavam com saudade da verdadeira sétima arte e cansados de heróis e seus superpoderes.
E não pensem os espectadores mais incautos que o longa foge de polêmicas. Acredito que a produção, durante toda a temporada de prêmios, dará muito o que falar por seu aspecto controverso. Embora o roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, não toque no assunto de forma direta, muitos membros da academia irão levar em consideração o livro Criando Kane, de Pauline Kael, no qual a famosa crítica de cinema detona Orson Welles, dizendo que ele nunca escreveu uma linha do roteiro do filme. Sou capaz de apostar um braço que ainda vai haver muito bate-boca daqui até a entrega do Oscar sobre esse assunto.
Mas a principal contribuição dada pelo diretor, a meu ver, é a maneira como ele expõe a nu a hollywood dos tempos passados. Um terra de lobos competindo selvagemente e constantemente pelo último pedaço de carne disponível. E mais: é possível entender aqui, com clareza, a indústria do cinema americano que idolatrou figuras como Harvey Weinstein nos últimos anos. Em outras palavras: hollywood gosta de pilantras e eles sabem ser extremamente bem-sucedidos. Difícil mesmo é permanecer ético e coerente dentro de uma estrutura sórdida dessas...
E como bem disse um amigo de Mank, aconselhando-o durante o processo criativo: "escreva muito, espere pouco". Realmente, não é um lugar para se viver de expectativas, mas sim cumprir agendas.
P.S: um rápido conselho (ou dica): se puder, antes de ver o filme, assista o clássico de Orson Welles. Acreditem: vai fazer uma diferença gigantesca ao final da experiência!
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