O ano que praticamente não começou chegando ao fim e eu quase me esqueço de falar do centenário da escritora Clarice Lispector. Não, isso definitivamente é inadmissível! Trata-se - pelo menos a meu ver - da maior escritora da história da literatura brasileira. E é preciso encontrar tempo para falar de alguém como Clarice.
Primeiramente: se for encará-la, debruçar-se sobre suas páginas, venha armado (mas no bom sentido). Ela é grande adversária. Enigmática ao extremo. Muitos homens e mulheres inteligentes titubearam diante de sua prosa. E, no entanto, aqueles leitores mais prematuros, menos confiantes de si, foram os primeiros a morrer de amores por ela. Clarice era assim: não gostava daqueles que faziam questão de entendê-la, classificá-la. Com ela não tinha essa história babaca de "o que o autor quis dizer...".
Não. Ela precisava ser sentida, seguida - mas sem tanta sisudez ou academismo -, amada. Ela era complexa, mas não por conta de uma dificuldade linguística ou gramatical, e sim por sua paixão ao narrar suas próprias histórias.
Veio de Tchetchelnik, na Ucrânia, para o Recife com meros dois anos de idade, por conta da guerra civil que assolava a Rússia naquela época. E ainda assim, enfrentou batalhas enriquecedoras por aqui. Aos 14 mudou-se para a cidade maravilhosa e conheceu os livros. Resultado: apaixonou-se de vez. Adorava principalmente aqueles "que tinham títulos bonitos", mas não parou neles, não! Longe disso...
Informação importantíssima: foi, desde nova, uma enorme fã de Monteiro Lobato. E fico me perguntando o que andam pensando dela, atualmente, os radicais que decidiram rotular Lobato de racista aos quatro ventos. Digo isso porque ser fã do criador do Sítio do pica-pau amarelo no Brasil de hoje dá muito pano para manga. Será que perdoaram pelo menos Clarice?
Como ficcionista ela falou muito de si, das cidades onde viveu, das angústias que passou, com seus narradores sempre na primeira pessoa... Não à toa é uma de nossas maiores representantes da literatura intimista brasileira. Aliás, intimidade é um conceito que condiz muito com ela.
Quando comecei a lê-la, por volta de 1997, 1998, havia o papo de que sua literatura era um grande fluxo de consciência, mas eu sempre achei primário defini-la dessa forma. Ela era bem mais abrangente do que isso. Tanto que tornou até mesmo uma barata - sua personagem mais exótica, parte do romance A paixão segundo G.H - um estudo de caso interessantíssimo. Sim, Clarice era sempre tema para ser estudada ao final da leitura.
Mostrou algumas vezes sua predileção por A maçã no escuro, que ela considerava seu livro mais bem construído, mas cá entre nós, é simplesmente impossível falar da autora e não mencionar Perto do coração selvagem, sua primeira obra, de uma extrema maturidade (embora tivesse apenas 20 anos) e A hora da estrela com sua heroína meio que às avessas Macabéa. Eu procurei o livro na época por fazer menção ao bairro de Olaria, na zona da Leopoldina, onde nasci e fui criado. E foi o suficiente para me encantar de uma vez por todas por sua prosa elegante e cheia de mistérios.
Além da literatura precisa e irretocável, Clarice envolveu-se também com o jornalismo - é dela o brilhante Correio feminino, feito para o Correio da manhã e fruto de um convite que recebeu do cronista Rubem Braga, no qual assinou com o pseudônimo de Tereza Quadros e a coluna "só para mulheres" no jornal Diário da noite - e a diplomacia, que lhe permitiu viajar mundo afora (Itália, Suíça, Inglaterra, Estados Unidos, etc). E ela soube integrar, como poucos, esse aspecto à sua obra ficcional.
Em 1977, aos 56 anos, vitimada por um câncer de ovário, a autora nos deixa. Contudo, alguns críticos e intelectuais que analisaram sua obra em detalhes, dizem que ela continuou trabalhando até o fim. Ditava seus textos mesmo de cama. Uma mulher com tamanha personalidade não poderia simplesmente desistir.
No fundo, no fundo, chego á conclusão de que Clarice Lispector é nossa dama incógnita, um ponto de interrogação que simplesmente não se responde, muito menos espera por isso. Ela buscou no seu jeito particular, subjetivo e autobiográfico de contar histórias uma façanha ímpar. Não era uma enciclopédia, que dirá um verbete literário (embora eu veja muitos tentando transformá-la nisso nas redes sociais, fenômeno que também ocorre com o escritor Caio Fernando Abreu). E ainda sim encantou tanta gente.
Que venha o aniversário de 200 anos, diva! (embora eu, infelizmente, não vá estar mais por aqui para apreciar isso).
P.S: na verdade dois toques: 1) assistam a versão cinematográfica de A hora da estrela, dirigida por Suzana Amaral e 2) fiquei sabendo recentemente que o diretor Luiz Fernando Carvalho está para lançar uma adaptação de A paixão segundo G.H e quero muito saber quando ela estreia. Vocês, não?
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