Com o passar dos anos e o convívio com o cinema do mundo todo (e não somente Hollywood, como acontecia na minha adolescência) aprendi a enxergar a sétima arte sob a ótica de dois grupos de diretores. Os primeiros são aqueles que buscam a glória, a projeção, que não titubeiam diante da obtenção do sucesso. E os do segundo grupo, meus favoritos, são os provocadores por natureza. Aqueles que não se rebaixam diante do star system ou das convenções morais de sua terra natal. Se têm que escandalizar, escandalizam; se é pra debochar, debocham sem dó. E principalmente: estão sempre um passo à frente do politicamente correto.
Dentre os meus diretores preferidos desse grupo encontram-se figuras como John Waters (que anda sumido das telas, por sinal), Terry Gilliam, Glauber Rocha, Brian de Palma, Oliver Stone, Fernando Meirelles, Wong Kar-Wai, Quentin Tarantino, Tom Tykwer, Pedro Almodóvar, Bong Joon Ho, Alejandro González Iñárritú, Beto Brant, Roberto Rossellini, David Lynch e, claro, desde sempre, David Cronenberg.
E no caso de Cronenberg em particular cabe ainda um adendo por toda a sua contribuição artística junto ao departamento de maquiagem (como esquecer de Scanners: sua mente pode destruir e A mosca?) e a enorme habilidade que tinha, no passado, para trabalhar com efeitos práticos, muito antes dos efeitos especiais e o CGI ditarem os rumos da indústria cinematográfica americana.
A obra cinematográfica de Cronenberg está repleta de projetos inusitados, que me deixaram de cabelo em pé. De Videodrome - a síndrome do vídeo até Gêmeos - mórbida semelhança, não teve uma só película desse gênio sórdido que não mexeu profundamente comigo. Contudo, nenhum outro projeto dele me colocou de ponta a cabeça como Crash: estranhos prazeres. E talvez por isso nunca tenha tomado coragem de fazer uma crítica a respeito. Até agora.
Crash pega um diretor de tv que acaba de sofrer um acidente de carro, James Ballard (James Spader, do clássico eterno Tuff Turf - o rebelde), para usá-lo como fio condutor numa jornada de autoconhecimento rumo aos EUA dos dias de hoje. Só que essa história foi contada em 1996.
Após o acidente e a consequente internação, James - acompanhado de sua esposa Catherine (Deborah Kara Unger) - conhece Helen (Holly Hunter), Vaughan (Elias Koteas) e Gabrielle (Rosanna Arquette), uma trupe de desajustados que frequentam um grupo fascinado por acidentes automotivos. Eles se reúnem em plena madrugada para assistir à réplica de famosos acidentes que levaram à morte grandes celebridades, como o astro hollywoodiano James Dean. Mais do que isso: vivem tão intensamente a cena que parecem estar presentes no momento exato em que elas aconteceram.
Em outras palavras: James, Catherine, Helen, Vaughan e Gabrielle compõem, na verdade, um clã dos imorais, pessoas que subvertem a própria ética com o único interesse de satisfazer seus prazeres nefandos. E nesse sentido tanto o livro homônimo de J. G. Ballard - que serviu de base para o roteiro - como a adaptação para as telas de Cronenberg são um deleite para os olhos depravados mais apaixonados. Com seu sarcasmo e ironia únicos, o diretor constrói uma mise-en-scene caótica e desesperada, um contraponto à ideia que os Estados Unidos adora fazer de si mesmo para o restante do mundo.
Enquanto testemunhamos a destruição e o esfacelamento social diante de nossos olhos, Cronenberg ainda tem tempo de nos perturbar um pouco mais com uma trilha sonora incômoda, dessas que só serve para nos acompanhar (e confundir) quando terminamos a sessão. Podem ter certeza: a música vai ficar ecoando na sua cabeça um bom tempo depois que o filme terminar, pois o objetivo dela é exatamente este.
Logo, o resultado final dessa equação macabra não poderia ser outro: o espectador se vê invadido por uma crônica do caos, onde os seres humanos não passam de mercadorias frágeis e fúteis, implorando por migalhas de atenção. E não se esqueçam da sexualidade de cada um dos membros do clã. Sim, aqui ela é um personagem coadjuvante importantíssimo na hora de entendermos a carência e o desespero de suas vidas. Eles parecem, a todo momento, se segurar a boias salva-vidas invisíveis, na esperança de dias melhores que nunca vêm.
Após terminar o filme, corro para o site IMDb e me deparo com a informação de que o último longa de Cronenberg, Mapas para as estrelas, é de seis anos atrás. E fico triste. Espero sinceramente que ele não tenha se aposentado. Ainda não. Um artista brilhante desses não pode ficar sumido dos cinemas tanto tempo. Volta, David! Só mais um pouco... Os fãs imploram.
P.S: não confundir esse filme com Crash: no limite, do diretor Paul Haggis, vencedor de 3 Oscars em 2006 e que roubou descaradamente o grande prêmio da noite do extraordinário O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee. A confusão seria, no mínimo, injusta.
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