quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Voltando ao ontem para falar do amargo hoje


A memória é dúbia. Por vezes traiçoeira, devastadora, digo até humilhante. E a arrastamos por nossas vidas, à procura de uma cura para todo aquele mal aprisionado. Em outras é libertadora, necessária, uma boia salva-vidas para seguirmos em frente e aprendermos com nossas derrotas. 

Seja uma versão ou outra, ela é fundamental, nosso eixo. Eu, pelo menos, sempre acreditei nisso e volta e meia faço dela o tema de meus textos. Acredito na memória como bússola e sou extremamente memoriográfico (às vezes, até mal rotulado como nostálgico). E é extremamente gratificante quando me deparo com um autor ou artista que sabe usar da memória de maneira perspicaz e pungente. 

E foi exatamente isso que eu senti após ouvir de cabo a rabo Letter to you, último álbum de carreira do cantor Bruce Springsteen, o eterno "the boss" norte-americano. 

Bruce recorre ao passado e às lembranças de velhos amigos para falar desse presente de incertezas (que o diga seu país natal, fulminado pelo período eleitoral e suas distorções). Ele se apresenta, em muitas canções, como "sobrevivente de uma era" e desabafa suas insatisfações e indiretas àqueles que deveriam colocar o país - e a vida - nos eixos.

A frase num momento você está ali/ no outro, não está mais... que pontua a canção de abertura "One minute you're here" diz muito sobre o clima que pautará todo o álbum. Uma sensação de melancolia acompanha a voz do cantor faixa a faixa, mostrando um Springsteen cansado de ver uma população cometer tantos erros e, muitas vezes, se orgulhar disso. 

Ele menciona, nas entrelinhas, a parte do povo americano que deveria ajudar seus semelhantes e, no entanto, prefere ver o circo pegar fogo (Eu queria que você me curasse, mas em vez disso você me incendiou, trecho da faixa que dá título ao disco), ressalta seu papel como messias por necessidade (Eu sou o último homem de pé agora, em "Last man standing"), apela a Deus como último recurso lúcido (Só lhe restou a fé, em "Power of prayer") e imagina até um possível reencontro com amigos num futuro próximo ("eu te vejo em mieus sonhos").

E não pensem que ele deixou de se posicionar sobre o momento político pelo qual os EUA passa. Pelo contrário. Aponta seu dedo acusador abertamente, seja chamando o presidente de "palhaço criminoso" que se apossou do trono (no caso, a grande nação americana), realçando o medo de vários segmentos do país ao dizer que "nós estávamos preocupados, mas agora estamos com medo" e avisa aos eleitores antes de irem às urnas que "a casa está pegando fogo", quase um convite à luta contra a opressão. 

No geral, é certamente o disco mais nostálgico e politizado do cantor nos últimos anos. E por incrível que pareça fez eu me lembrar daquele Bruce dos tempos de Born in the USA (guardadas as devidas proporções históricas, é claro!). 

Termino a audição do disco no spotify e fico com a sensação legítima de ter escutado um grande livro de crônicas sobre o século conturbado que mal começou e já deixa cicatrizes amargas, mas desses que somente os mestres do gênero são capazes de fazer (refiro-me a um Rubem Braga ou um Sam Sheppard, para ficar nos melhores). E o resultado final dessa "leitura" é um misto de niilismo, desolação e esperança contida (pois, sim, a esperança não deve morrer nunca). 

E é por causa de experiências inebriantes como essa que eu ainda continuo procurando por boa música contemporânea em meio a tantas bundas rebolativas e trashs musicais. Se eu ainda não parei no tempo e me tornei refém de clássicos, hits e álbuns tutoriais sobre a história da música é por causa de vozes (e também das palavras) de mestres como Bruce Springsteen. 

Ficaram curiosos? Agora vão lá dar uma conferida, pois não custa nada e a música ainda por cima é ótima!


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