sábado, 31 de agosto de 2024

Quando a vida é só fugir da morte


Desde que ouvi falar, pela primeira vez, sobre o projeto cinematográfico Motel Destino, do diretor Karim Ainouz (que fez parte da mostra competitiva do Festival de Cannes desse ano), me interessei de cara. Karim faz parte de uma geração do cinema nacional que pode filmar qualquer assunto e ainda assim chamar a minha atenção de cara. Este novo filme não é exceção. Pelo contrário. Trata-se de uma interessantíssima aquisição para o meu curriculum cinéfilo. 

Acompanhamos a saga de Heraldo (Iago Xavier), que busca fugir de sua vida trabalhando para o tráfico. Ele almeja uma nova realidade para si, contudo tem dívidas a serem quitadas e para se livrar delas, é necessário realizar - junto com seu irmão - um "último serviço".

Por conta de um encontro amoroso que acaba mal, ele não chega ao local do serviço a ser feito e seu irmão é morto. Procurado pelos homens de Bambina, a líder do tráfico, ele pede abrigo a Dayana (Nataly Rocha), no motel de beira de estrada que dá título ao longa. E ao conhecer Elias (Fábio Assunção), gerente do local e esposo de Dayana, acaba sendo contratado como faz-tudo do lugar. 

O problema é que, mais do que um mero refúgio, o motel acaba virando para Heraldo uma oportunidade de uma nova jornada quando se apaixona por Dayana. E todo o contexto, o clima erótico proposto pelo estabelecimento ajuda a criar esse sentimento de "eu preciso dar um jeito na minha vida o quanto antes". 

Como o próprio personagem diz numa das cenas finais da película, sua vida sempre se resumiu a fugir da morte de tempos em tempos, por estar sempre envolto em problemas e associado a pessoas ligadas ao crime. E ele vê no love story com Dayana uma real chance de se libertar disso. O problema: o temperamento violento e por vezes radical de Elias.

Assim como aconteceu anteriormente em seus longas Madame Satã e O céu de Suely, em Motel Destino Karim também exerce seu estilo, brinca com cores e sonoridades e nos apresenta um filme que flerta de forma muito eficiente com o erotismo (artigo raro hoje em dia, em tempos de moralismo exacerbado e cenas de sexo por vezes escrachadas e descontextualizadas da realidade). Aqui nada me parece fora do tom nesse sentido - e não à toa o diretor já disse que pretende transformar esse universo numa trilogia. 

Para quem anda cansado de Tatá Werneck, Paulinho Gogó e cia, Motel Destino é não somente uma excelente pedida, como também um animal meio que estranho em nossa atual cinematografia. E por isso mesmo merece ser apreciado, de preferência a conta-gotas, para não perder o fio da meada. Apreciem sem moderação!   


domingo, 25 de agosto de 2024

Os "80 anos" de Leminski


A literatura brasileira - não somente a poesia, mas ela como um todo - nunca precisou tanto de Paulo Leminski quanto atualmente, em tempos de hipocrisia passadista, pautas identitárias em excesso e uma sociedade praticamente descrente de tudo. E pensar que ele teria feito 80 anos ontem...

Leminski era pop, mas também anárquico, afiado como uma espada samurai, uma metralhadora verborrágica no melhor sentido da expressão. Capaz de ir do haicai (o poema curto japonês) ao majestoso Catatau (para muitos críticos, sua mais importante obra) com a mesma naturalidade e elegância. 

Era ótimo ler seus textos, mas sublime ver suas apresentações. Ele de quimono, declamando suas estrofes mezzo românticas mezzo radicais. No curta-metragem "Assaltaram a gramática", de Ana Maria Magalhães, desaforado, livre até a alma, preciso em suas intenções, ao lado de outras feras da poesia tupiniquim como Chacal e Waly Salomão. Suas entrevistas despudoradas, à frente do seu próprio tempo. 

Meu primeiro contato com ele, curiosamente, foi através da biografia Paulo Leminski: o bandido que sabia latim, de Toninho Vaz. E fiquei em êxtase ao fim da última página, querendo saber ainda mais sobre ele. 

Filho de um militar polonês e uma brasileira negra, Leminski foi uma incógnita por natureza. E fez dessa miscigenação um carro-chefe para seu pensamento livre. A sensação que os leitores tinham era a de que não houvesse assunto sobre o qual ele não pudesse discorrer. Era quase uma enciclopédia cultural viva. E melhor: um livro aberto, sem rodeios, desculpas, mimimis. 

Leminski fez parte de uma época, de um tipo de Brasil, que infelizmente ficou no passado, dando lugar a uma sociedade confusa, carente, sem rumo pré-definido. E por isso sua lembrança hoje - e aqui neste singelo post - é tão bem-vinda. É preciso (mais do que isso: é fundamental) que resgatemos figuras artísticas como ele, pessoas sem freio, sem medo, produtores de uma arte que não caiba num rótulo ou num mero status. 

O país anda órfão disso (e muito!) nas últimas décadas. E precisamos nos reencontrar o quanto antes com esse descaramento, com essa falta de papas na língua. Pois o contrário disso é esse execrável fundamentalismo religioso dos tempos atuais. E acreditem: nenhum povo minimamente lúcido sobreviverá a tamanha demagogia orquestrada e fingida. 

Salve Leminski!


sábado, 24 de agosto de 2024

O alien enfim de volta?


A franquia Alien durante os anos 1980 foi um fetiche meu, de tanto que eu reassistia, seja quando exibido na tv aberta ou alugado em videolocadoras. Eu tinha uma espécie de devoção eterna pela Ellen Ripley da atriz Sigourney Weaver e não somente pelo fato dela ser a primeira protagonista feminina com a qual me identifiquei, mas sim por ser uma badass de respeito e ainda por cima num gênero (a ficção científica) que ainda é o meu favorito até hoje. 

Contudo, verdade seja dita, a mesma franquia depois dos projetos dirigidos por Ridley Scott, James Cameron e David Fincher desceu ladeira abaixo - e de forma feia, quase insultando seu público. Passou a perder tempo com discussões filosóficas inúteis e se escondendo atrás da direção de arte e da fotografia. 

E eis que aparece o diretor uruguaio Fede Alvarez - dos interessantes A morte do demônio e O homem nas trevas - e se propõe a levar a franquia para um novo lugar. O nome dessa tentativa é Alien: Romulus. E ele escolhe um caminho acertado: voltando seu olhar para aquilo que deu certo no passado. 

E a pergunta que os cinéfilos certamente farão é: o alien, a criatura, está lá, de volta, do jeito que merece, sem apelar para debates morais e subtramas desnecessárias? Na maior parte do longa, sim. Entretanto, não esperem só pelo saudosismo dos filmes anteriores. Essa versão também possui sua própria história para contar. 

Dessa vez o que os funcionários - os mineiros - mais querem é um lugar de paz para chamar de seu, e não passar a vida inteira renovando contratos para atender as demandas de uma companhia inescrupulosa. E para isso precisam furtar um objeto valioso dentro de uma base espacial abandonada. O problema: o perigo que ela contém ali armazenado. 

Rain (Cailee Spaeny, em alta em hollywood depois de Guerra civil e Priscilla) não é uma sucessora de Ripley - impossível, pois ninguém é Ripley! - mas entrega as aflições de uma mulher esgotada pelo trabalho, cuja única companhia é o andróide que ela chama de irmão. E durante todo o terror vivido na base ela parece ser a única que não se entregou totalmente aquela mentalidade capitalista nociva e covarde. Já o resto da equipe...

O melhor de Alien: Romulus, com certeza, é saber que ele trouxe a franquia de volta para um caminho mais íntegro. Resta saber o que os produtores vão fazer com isso daqui pra frente (e eu confesso que preferia que eles tornassem esse um ato final, pois ando cansado de franquias, reboots, spinoffs, etc). Já o pior: é difícil imaginar esse universo num lugar muito diferente dessa estrutura em que se encontra. Ou seja: ele nunca será mais do que um blockbuster e cinema sempre foi mais do que somente isso. 

E agora? Como é que fica? Quem assistiu, favor deixar seus comments aqui para que juntos encontremos uma solução para essa saga que já foi, num tempo não tão distante assim, uma pérola da sétima arte...


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Billy Wilder era mito e ponto final


Billy Wilder é um dos meus ídolos cinematográficos para todo o sempre (e o melhor de tudo: sem fazer o menor esforço). Mas é bom que se diga que toda a geração da nova hollywood era devota de carteirinha de sua filmografia, que não merece outro adjetivo diferente de irretocável. 

Ele conseguiu me apaixonar e assombrar com a mesma naturalidade. Transformou cenários a priori simples como um julgamento ou um reles apartamento em objetos cênicos de grandeza única. Poucos na história do cinema americano fizeram tanto pela sétima arte quanto ele (para mim, são uma espécie de tríade: Billy Wilder, John Ford e Alfred Hitchcock).

E eis que o Museu da imagem e do som de São Paulo (localizado no Jardim Europa) nos presenteia com uma exposição que é praticamente um delírio, de tão fidedigna e apaixonada pelo artista que é. 

O cinema de Billy Wilder é mero 1% da genialidade e do talento desse estupendo cineasta. Mas cá entre nós: que 1% exuberante!!! E duvido que, quem não conheça absolutamente nada sobre o diretor, não saia correndo direto para os streamings e a internet à procura de seus longas. 

Fotografias, objetos de cena, trechos de roteiros, figurinos... A exposição é um deleite para qualquer cinéfilo fanático que se preze. 

A melhor parte são os cenários dos filmes homenageados. Há um pouco de tudo: o cenário noir de Pacto de sangue, a famosa piscina e a escadaria de Crepúsculo dos deuses, a escuridão da mina de A montanha dos 7 abutres, o campo de prisioneiros de Inferno nº 17, o vagão de trem de Quanto mais quente melhor, a Paris nostálgica de Irma la Douce, o figurino de Edith Head para Sabrina, a recriação do tribunal em Testemunha de acusação, o apartamento de Jack Lemmon em Se meu apartamento falasse,  uma rua londrina de A vida íntima de Sherlock Holmes, até mesmo a imagem da atriz Marilyn Monroe recriada digitalmente tem seu momento de destaque.

Ao fim do passeio a sensação que fica é a de déja vu (e sem ele, quase todo mundo sabe, não há cinefilia que se sustente). Espero que realizem outras com mais grandes nomes da película. Afinal de contas, não faz mal algum relembrar de uma época em que hollywood sabia produzir grandes histórias e não se limitava a faturar com box office, não é mesmo?

Conheçam. Para mais informações, visite: https://mis-sp.org.br/exposicao/o-cinema-de-billy-wilder/


domingo, 18 de agosto de 2024

O maior galã do cinema francês


Que semana, hein! Parece até sacanagem... Mal lidamos com a partida de Sílvio Santos e os jornais e tabloides nos trazem a notícia da morte do ator Alain Delon. Confesso: tenho sentimentos dúbios sobre o artista. Sempre o achei por demais antipático e posudo, mas mesmo assim gostava de ver seus longas. 

Impossível dissociá-lo do clássico Rocco e seus irmãos, de Luchino Visconti, daquelas produções cinematográficas que sempre serão lembradas como eternas ao redor do mundo. E ele, para mim, sempre será Rocco Parondi, está incrustado em seu dna artístico. Contudo, sempre que me lembro de suas atuações, não consigo evitar a lembrança de Alain como o Tom Ripley, protagonista de Patricia Highsmith, em O sol por testemunha, de René Clément (que o próprio Delon confessara ser o diretor mais importante em sua carreira).

Além das indicações óbvias, deem também - cinéfilos de primeira viagem - uma oportunidade à Borsalino (em parceria com seu buddy Jean-Paul Belmondo, outro gigante da sétima arte francesa) e, claro, o magnífico O leopardo (lembro que corri que nem louco atrás do romance depois que vi a versão para o cinema). E há também uma série de filmes policiais extraordinários com ele, dignos de nota. Procurem no perfil do ator na IMDb.

A vida de Alain Delon também foi marcada por escândalos (o filho com a cantora Nico, acusações de assédio, até incitação ao estupro) e isso, de certa forma, ajudou a queimar o filme do artista nas últimas décadas. Sim, sua morte não foi tão sentida no país quanto a imprensa almejava. 

Alain andou dando declarações bombásticas nos últimos tempos, muitas delas homofóbicas e preconceituosas. Outro tema que pautou seu nome nos últimos anos foi sua decisão junto a família de realizar o suicídio assistido (até o presente momento, não sei se ele teve o seu desejo atendido). As brigas entre os filhos por conta do patrimônio dele também ganharam as manchetes de forma impactante. 

E ainda houve a história do arsenal que a polícia encontrou em sua residência durante uma batida. Em suma: ele também acabou se tornando um expoente desse conservadorismo covarde que vem ganhando status nos últimos anos na Europa, bem como no resto do mundo. O que é triste, em se tratando de uma figura pública tão importante quanto ele. 

Entretanto, mesmo com tantos revezes, acho difícil que algum outro ator na França consiga destroná-lo do status de maior galã do cinema francês. Sua imagem era tão icônica e as mulheres, tão loucas por ele, que praticamente acabou se tornando um modelo de beleza praticamente insuperável. 

Enfim... É mais uma perda irreparável (e insubstituível) para a história do cinema mundial. E a continuarmos nesse ritmo, temo pelo futuro da sétima arte.


sábado, 17 de agosto de 2024

O homem do baú se foi


É tão fácil, mas ao mesmo tempo tão difícil, falar do apresentador e empresário Sílvio Santos. Fácil porque sua história se confunde com a da televisão brasileira. E difícil porque você sempre pensa, na hora H: "eu vou me esquecer de alguma coisa, eu sei que vou...". Sua figura foi tão onipresente na telinha que marcou o século XX. E agora, posso dizer que sua morte foi meio que um epílogo, o encerramento de uma era. 

Senor Abravanel vem para o Brasil e ganha a vida como camelô, morando na Lapa, bairro boêmio do RJ. Com sua voz indefectível, foi locutor, trabalhou em rádio, até que organizou eventos na barca da cantareira (mal sabia ele que aquilo seria o embrião de sua marca registrada... ou sabia?). Conhece Manuel de Nóbrega e, com ele, o Baú da felicidade - que ia mal das pernas financeiramente -, revoluciona-o e daí para a televisão, como funcionário da Rede Globo, e posteriormente dono de uma concessão (a TVS, que anos depois virou SBT) foi um pulo.

Só que há um elemento mais importante do que tudo isso dito no parágrafo anterior: o carisma e a popularidade de Sílvio. Ele imprimou uma marca, falou a língua do povo, escrachou (no bom sentido) quando necessário e transformou o domingo das pessoas num grande parque de diversões. 

Impossível não lembrar de Roletrando, Porta da esperança, Show de calouros (com um júri que ia do sempre destrambelhado Sergio Mallandro à rabugenta Aracy de Almeida), O show do milhão, o pião da casa própria, e principalmente, das loucuras que ele autorizava em sua programação. A mais famosa delas - pelo menos, para mim - foi o dia em que a Globo estendeu o Fantástico por mais tempo do que o necessário e o canal paulista exibiria Rambo, com Sylvester Stallone, na famigerada Sessão das dez. Ele mandou parar a programação, colocaram um cartaz do personagem com os dizeres: "assim que o fantástico encerrar, exibiremos Rambo".

Eu nunca mais vou me esquecer desse dia! 

Ele até mesmo chegou a se candidatar à presidência da república (candidatura embargada por desavenças políticas) para deleite de suas "colegas de auditório".

Em 2001 virou enredo da escola de samba Tradição e eu pude, enfim, ter a dimensão exata do carisma e do apelo popular do apresentador. Naquele momento eu entendi que nunca mais teremos outro como ele. Sílvio Santos era uma catarse ambulante, capaz das façanhas mais loucas em nome tanto da audiência como da manutenção da história televisiva do nosso país. É com folga nosso maior comunicador e, por isso, sua partida será por demais sentida. Mais do que isso: encerra um ciclo nesse veículo de pouco mais de sete décadas. 

E eu me pergunto aqui, ao fim deste singelo post: o que esperar das emissoras de tv daqui pra frente? Teremos nós testemunhado o fim derradeiro deste formato?  

Fica com Deus, mestre! 


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

R.I.P Gena Rowlands


Eu vejo essa geração cinéfila contemporânea chamando atrizes como Zendaya e Jenna Ortega de fenômenos precoces e, honestamente, dá vontade de rir, mais: de gargalhar. Eles não fazem a menor ideia do que seja realmente uma atriz fenomenal (e eu vi inúmeras, grande parte delas infelizmente não mais entre nós!). E ontem hollywood perdeu mais uma delas.

Seu nome? Gena Rowlands. 

Entender Gena é, antes de tudo, conhecer sua parceria extraordinária com o marido (e também ator e diretor) John Cassavetes. Nossa relação como espectador do seu trabalho atinge outra dimensão quando nos deparamos com clássicos como Faces, Noite de estreia, Uma mulher sob influência, Glória... 

Mas ela foi bem mais do que a musa e esposa desse grande diretor. As gerações mais novas, certamente irão lembrar dela mais pelo cult Diário de uma paixão, dirigido pelo filho do casal, Nick Cassavetes. E o curioso: numa personagem cuja doença é exatamente a que extinguiu a sua vida (no caso, o Alzheimer). Daquelas produções que facilmente ganham o rótulo, aqui no Brasil, de sessão da tarde. 

Ser atriz, na época de Gena Rowlands, era para poucas. A concorrência era feroz - seja no quesito beleza ou talento - e bastava um mero deslize e você desaparecia dos holofotes para alguém com um biotipo muito parecido com o seu. E mesmo assim ela deixou sua marca. 

A impressão que eu tenho, revendo hoje em dia suas atuações, mesmo em longas de pouca repercussão ou comédias de segundo escalão, como Roubando vidas, A chave mestra, Corações apaixonados e Quando o amor acontece, é que ela "falava com os olhos". E sua compleição física era tão marcante, tão difícil de apagar da mente, que ficávamos hipnotizados. Ela era, sem sombra de dúvidas, um tipo de beleza que anda em extinção na atual indústria. 

Foi indicada a dois Oscars, venceu três Emmys e dois Globos de ouro, mas isso é simplesmente secundário em sua obra. O que fica de legado para os fãs é seu carisma, sua imagem forte nas telas, em meio a uma geração tão brilhante quanto ela (e mesmo assim conseguiu imprimir seu estilo próprio). Vai fazer - muita - falta!

E hollywood continua se despedindo dos melhores... e a renovação à altura, cadê? Pois é... Fica com Deus, musa! Você merece.    


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Um dueto mágico


Aprendi uma coisa com a internet (principalmente com os sites de vídeos, como you tube, vimeo, etc): é preciso aproveitar os grandes - e cada vez mais raros - momentos de genialidade. A internet enfileira a mediocridade e o puro talento em doses homeopáticas e iguais. E é necessário, mais do que nunca, saber distinguí-las. 

Ontem enfim assisti a um delírio em forma de música. Já haviam me alertado previamente sobre o novo encontro (mais do que isso: um dueto magistral) do cantor Milton Nascimento com a cantora e violoncelista Esperanza Spalding. Fui correndo caçá-lo nas páginas do site. E me deparo com o Tiny Desk (Home) Concert produzido pela dupla. 

Em uma palavra? Sublime! Mas isso somente não basta para definir essa experiência. 

Primeiramente: faz-se obrigatório elogiar não somente a banda que os acompanha como os convidados que inserem sua parcela de genialidade (o violão de Guinga é um escândalo por si só!). Outro ponto irretocável: que prazer ímpar ver Esperanza cantando em português, com uma coragem assustadora, algo ao qual os gringos não costumam se submeter, por acreditar ser nosso idioma uma expressão menor. 

O repertório do pocket show é um caso à parte que, sozinho, já mereceria um texto próprio. "Cais", "Outubro", "Saci", "Saudade dos aviões da Panair" (com a luxuosa ajuda da cantora Maria Gadú) e, finalmente, "When you dream", de Wayne Shorter e Edgy Lee. Ao fim, aquele gostinho de quero mais na boca. Eu pensando: "isso valia uma apresentação de, pelo menos, umas duas horas". 

Enfim... Os fãs de boa música nunca ficam satisfeitos, não é mesmo?  

O legado desse evento, show, espetáculo, provocação, como chamá-lo finalmente? é um passeio por sonoridades, peculiaridades, a certeza de que a MPB é muito maior do que aquilo que o mercado fonográfico vem mostrando nos últimos anos. Pena que terminou tão rápido.

Procurem! Antes que o you tube invente de sumir com essa obra-prima...


sábado, 10 de agosto de 2024

10 anos sem Robin Williams? Sério?


Eu lembro do dia em que ele ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante por Gênio Indomável, de Gus Van Sant; do discurso de agradecimento, do abraço em Billy Cristal, do deboche à Harvey Weinstein... Lembro de seus filmes mais loucos, de seu humor ímpar (Mel Gibson, quando soube de sua morte, disse tudo: "ele levou a comédia a um patamar nunca mais alcançado"), até mesmo da surpresa em vê-lo em papéis dramáticos, difíceis. E ele era o máximo!

Hoje leio a notícia de que Robin Williams faleceu há 10 anos. Como assim? O tempo parou de vez ou fomos nós que não percebemos? Tem algo errado, só pode... Não! É isso mesmo! 10 anos. 

A grande maioria do público com certeza vai se lembrar da Mrs. Doubtfire de Uma babá quase perfeita, do médico palhaço Patch Adams, de Uma noite no museu, Jumanji, do Peter Pan adulto em Hook: a volta do capitão gancho... Entretanto, eu tinha um olhar para o artista que ia muito além do humor. E ele, extremamente talentoso, sempre correspondia às minhas expectativas. 

Há momentos pontuais na carreira de Robin que sempre ficarão guardados em minha mente para todo sempre: o médico que busca um tratamento experimental para um setor de pacientes do hospital onde trabalhava, vítimas da doença do sono, em Tempo de despertar; o marido recém-morto que vai ao vale dos suicidas buscar sua esposa, falecida há tempo, em Amor além da vida; o professor universitário fora dos padrões, responsável por fazer seus alunos enxergarem a vida além dos ditames acadêmicos em Sociedade dos poetas mortos; o radialista que tornou a guerra uma reles coadjuvante sem importância em Bom dia, Vietnã...

E isso porque eu só falei dos longas. E as dublagens? E o gênio da lâmpada em Alladin, os pinguins de Happy Feet? E tudo o que ele fez pelo stand up? E quando ele roubava a cena em algum prêmio da academia e deixava toda a plateia roxa de tanto rir? O cara era foda! 

Diziam que Robin era hiperativo. Que fosse! Que ele escondia do público quem realmente era, suas emoções, que seu humor era uma máscara, um álibi, uma desculpa... Gente, fala sério! É disso que vocês vão querer lembrar agora? Robin foi cientista, presidente da república, robô, terapeuta, dono de boate de gay, refugiado, marinheiro Popeye, padre (sim, acreditem! parece louco, mas é verdade!), trambiqueiro, homicida, mendigo... e sabe-se lá Deus o que ainda teria aprontando se estivesse vivo. 

A verdade é que hollywood nunca mais foi a mesma sem seu escracho, sua ironia ácida, sua elegância artística, em suma, sem sua cara de pau. E as sessões de domingo - de todos os dias, gente! - ficaram por demais sem graça. E dizer "é uma pena" não basta. 

Fica com Deus, Robin (de novo). Você era demais!


terça-feira, 6 de agosto de 2024

Um desassossego muito bem vindo!


Primeiramente, antes de qualquer outra coisa que eu diga neste post, é preciso evidenciar: Fernando Pessoa é foda. E ah quem dera isso fosse o suficiente para explicar a sua obra, o seu talento e, principalmente, o seu legado tanto para a literatura portuguesa quanto a mundial. 

O poeta modernista que nos entregou o clássico Mensagem e criou um universo à parte dentro da literatura com mais de 100 heterônimos (100 vozes ímpares, capazes de quase formar um microcosmos da sociedade) é, sem sombra de dúvidas, das melhores coisas que a arte já foi capaz de nos apresentar. E eu me pergunto de quando em quando o que ele ainda seria capaz de aprontar se vivesse nesse século XXI fragmentado, confuso e cheio de ideologias efêmeras! 

E fiquei pensando então, depois de lembrar de tudo isso: "pronto! tudo o que eu podia dizer sobre esse mestre já foi dito. Não falta mais nada". Verdade? Antes fosse! Eu ainda não havia lido o magistral e indispensável o Livro do desassossego

Figuras proeminentes da crítica literária já chamaram este calhamaço de "o antilivro", "subversão literária", "negação", "o livro em plena ruína", "o livro-sonho"... chegaram até a compará-lo com James Joyce, de quem acusam (até hoje) de colocar o mercado editorial em colapso ou crise. Enfim... nenhuma dessas definições fazem jus à obra.

A priori Livro do desassossego parece não ter pouso certo, destino algum. Ou talvez seu destino seja ficar vagando entre memórias furtivas, por vezes repletas de lacunas. No entanto, nenhuma outra obra do poeta disse mais sobre ele, sobre suas agruras, seu demônios interiores, do que essa.

Trata-se de uma viagem para lá de pessoal (e, por isso mesmo, em certos momentos, confusa, truncada) à mente febril de um gênio. Não esperem por happy ends, soluções práticas, explicações acadêmicas ou mesmo um clímax arrebatador. Aqui, o que realmente está em jogo é nos deleitarmos com as premissas, opiniões - por vezes contraditórias até - e desabafos apaixonados de um homem que lutou com unhas e dentes contra um mundo complexo e que ele não o entendeu completamente. 

Recomendo a leitura apenas para corajosos e amantes dos autores clássicos. A nova geração, mais afeita à young adults, franquias e auto-ajuda, certamente ficará desconsolada ao acompanhar o ritmo de Pessoa, bem mais lento e particular (o que não significa, em nenhum momento, monótono ou repetitivo).

Entra com folga na minha lista de melhores leituras de 2024. Na verdade, onde eu estava com a cabeça que ainda não o havia lido antes? Conheçam! Se possível hoje mesmo, de preferência... 


quinta-feira, 1 de agosto de 2024

35 anos sem o rei do baião


Dizer que nossa MPB é múltipla - embora um idiota aqui e ali prefira defender apenas sua zona de conforto -, é chover no molhado. Entretanto, há figuras que merecem (com todo o orgulho) um lugar especial em nosso mercado fonográfico e, principalmente, em nossa cultura. 

Um deles, e sem parar muito para pensar ou refletir, é Luiz Gonzaga, nosso eterno rei do baião. Quem mais poderia merecer a alcunha de "a cara do Brasil"? Que outro artista poderia rivalizar com ele na hora de falar (cantando) o que é o nosso povo miscigenado? Acho, sinceramente, a competição até injusta, seja lá quem for o outro artista em questão. 

E eis que chegamos a três décadas e meia sem Luiz Gonzaga (ou simplesmente Lula, como gostava de lhe chamar a cantora Elba Ramalho). Mais do que uma mera saudade que não tem tamanho, a ausência de Gonzaga em nosso cancioneiro é um buraco que não se fecha. Contudo, é respeitado e relido sempre que pode na obra de nossos artistas contemporâneos, que reconhecem sua influência bem como seu legado para a nossa música. 

O homem que nos entregou interpretações como "Asa Branca" (clássico eterno e insubstituível), "Vem morena", "Xote das meninas", "A vida do viajante", "Dezessete e setecentos", "Respeita Januário", "Pagode russo", "O chêro da Carolina", e tantos outros hits, definiu musicalmente a cara que o nosso povo sempre teve. 

Pergunte a qualquer pessoa que já ouviu alguma canção interpretada por ele, o que ela (a canção) lhe significou. Você certamente ficará surpreso com a resposta. Eu próprio quis entender o que era o nordeste deste país por causa de suas músicas. 

E esse jeito simples e poderoso de cantar, de emitir sua mensagem de forma a atender a todos os públicos é justamente o que anda em falta na nova geração de artistas, mais preocupada com status financeiro e com quebrar recordes duvidosos numa era da internet cada dia mais confusa e contraditória. 

Mais triste ainda é saber que seu filho, Gonzaguinha - outro gênio da MPB, mestre na arte de criar canções poderosas -, também já não se encontra mais entre nós. E eu penso, então, vencido: o que sobrou para nós, pobres e verdadeiros fãs da boa música brasileira? sem obter uma resposta minimamente palpável. 

Que o dia de hoje sirva para relembrarmos - e reescutarmos - esse mito da história da nossa música popular. Porque acreditem: outro como ele? Acho que nunca mais.