segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Contradições


Não há dúvidas: somos um país contraditório por natureza. Um país de não leitores em demasia, mas que no entanto figura na lista das nações que mais editam livros no mundo. Que vive sempre reclamando da falta de tempo para tudo, quando na verdade nunca falta tempo para aquilo que nos interessa de fato. Falamos de solidariedade, mas não perdemos a chance de segregar ou ser intolerante com o próximo (principalmente quando o assunto é cultura, religião e política). 

Contudo, quando me deparo com um artista capaz de tratar dessas contradições de forma inteligente, bem humorada, sem soar sectário, ele merece o meu respeito. 

Há algum tempo não tenho comparecido ao teatro, pois não tem me agradado a atual programação do segmento. E toda vez que isso acontece eu recorro ao you tube (eu sei... vocês vão dizer: "sempre ele") e ao vimeo, onde volta e meia encontro esquetes e peças completas disponíveis. Há muita baboseira religiosa e muita coisa amadora, mas de vez em quando meus olhos param num ou outro espetáculo que ganha a minha atenção de maneira mais profunda. Sete minutos foi um desses casos.  

A peça, escrita pelo ator Antônio Fagundes em 1993 e dirigida pela eterna diva Bibi Ferreira, já havia circundado ao redor do meu radar anos atrás, já que foi lançada em formato dvd (uma ousadia, em se tratando de teatro no Brasil). Entretanto, por algum motivo que não sei explicar acabei por não vê-la. Erro meu. 

O espetáculo conta a história de um ator (Fagundes), durante uma montagem de Macbeth, de William Shakespeare, que decide abandonar o palco e cancelar a encenação, irritado com um espectador que tosse o tempo inteiro. Ele vai direto para o camarim e começa a fazer um grande desabafo para seu parceiro de elenco e a empresária (Suzy Rego) sobre o momento terrível que o teatro vive no Brasil, engolido por tecnologias e uma cultura da alienação sem precedentes. 

Mais do que isso: ele exemplifica registros vários que impedem qualquer ator minimamente digno e profissional de permanecer concentrado em cena. Papéis de bala, sacos de batatas fritas, celulares tocando o tempo todo - há inclusive uma cena engraçadíssima em que ele interrompe a peça para atender ao telefone de uma espectadora que toca -, bocejos, pigarros e as inevitáveis tosses. A frase que, para ele, resume o papel que o teatro tem no país é: "o teatro é a antessala da pizza". E não está completamente errado. 

Acompanho sempre que posso montagens as mais diversas e sempre me deparo com o desrespeito e a falta de silêncio nesses lugares. Não tem muito tempo vi um grupo de espectadores abandonando um espetáculo em que fui, irritados porque a personagem da peça divergia completamente de suas visões religiosas. Sim, chegamos a esse nível de baixaria. 

O ator de Sete Minutos flerta com os mais diferentes tipos de contradições. Exalta personagens clássicos do teatro para mostrar o quanto que o público está por fora de praticamente tudo no que diz respeito à arte. Só pensa em sua própria comodidade e estilo de vida. E o próprio conceito de interrupção nos dias de hoje ganhou um status de modismo ou charme. Se acham que estou exagerando, prestem bem atenção ao seu redor. Ouçam, vejam as pessoas que frequentam os mesmos lugares que você e tire suas próprias conclusões. 

Aliás, a própria ideia de comercializar o espetáculo em dvd. podendo vê-lo em partes, dar pausa, reiniciar quando não entender alguma parte, já é uma contradição com o próprio espetáculo em si. Na verdade, a peça é quase uma ode às contradições. Mas tudo feito de maneira bem divertida e sem perder o seu caráter denunciatório. 

Arrependo-me, ao fim da encenação, de apenas uma coisa: de não ter assistido Sete Minutos ao vivo. Mais: de não ser o dono do celular que tocou na hora que Fagundes desceu do palco para atendê-lo. Teria sido uma honra ter feito parte desse jogo cênico. 

Quem diria! Em tempo de vacas magras na cultura nacional, com um governo cretino e tendencioso querendo pautar o que devemos ler, assistir, ouvir, encontro num site de internet uma peça "velha" capaz de me fazer pensar sobre o ontem, o hoje e o amanhã. 

E ainda tem gente que diz que a internet não serve pra nada...

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