sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Histeria atroz


O mundo das artes plásticas é, no mínimo, um tanto irônico. E por vezes, é bom que se diga, eu o considero mórbido. Porém, não vejo a morbidez nesse caso como algo menor, um defeito, um deslize. Pelo contrário. Minha relação com esse mundo das artes volta e meia precisa gerar controvérsia e há uma legítima adoração de minha parte pelo amargor, pela rigidez, pelo exótico, por aquilo que outros podem chamar prematuramente de negativo. 

Em outras palavras: gosto do mórbido como reflexão. Acho-a mais do que justa. E nesse sentido poucos quadros na história mundial das artes plásticas chamaram tanto a minha atenção quanto O grito, de Edvard Munch (1863-1944). 

E é preciso confessar aqui logo de cara: minha relação com a pintura não começa exatamente com o quadro em si. E sim com uma imagem que, na minha cabeça, sempre fez alusão à pintura. Falo da imagem que vejo do homem gritando no filme Pink Floyd: the wall, do diretor de cinema Alan Parker. E desde já adianto: se não há nenhuma relação entre filme e pintura, então eu cheguei até esta adoração e por conseguinte este texto por mera coincidência e nada mais. 

A cultura pop nos últimos anos fez uma correlação entre O grito, de Munch, e a máscara do antagonista da série de filmes de suspense Pânico. Contudo, não gosto dessa referência. Acho até que ela diminui o trabalho do pintor. 

O grito faz parte de uma série de trabalhos de Munch que ficou conhecida como A frisa da vida (ou um poema sobre o amor, a vida e a morte). E ele expunha seus quadros à ação da neve e da chuva, com o intuito de perder um pouco o controle do resultado final plástico. Em suma, um visionário de sua própria era. Detalhe: enganam-se aqueles que pensam existir apenas uma versão da tela. Só de litogravuras - que serviam de base para a criação - ele imprimiu 45, sendo que algumas foram coloridas à mão. 

Muitos estudiosos interpretam a reação do personagem na tela - o grito em si - como fruto da ansiedade daqueles tempos ou do desespero pessoal do autor. E não estão completamente errados, não! 

E, além disso, acredito piamente que esse sentimento do quadro perdura até os dias de hoje. Digo mais: tenho minhas dúvidas se o autor não estaria se sentindo ainda pior nesse século XXI no qual estamos tendo de encarar muitas das piores resoluções humanas de toda a nossa história. Ou seja, vivemos na prática uma espécie de histeria atroz (e vejo a tela de Munch gritando também sobre isso!).

Quando tiverem um tempo livre, procurem pela versão online do quadro na internet. Diferentemente da exatidão pintada por Goya e Leonardo da Vinci, a obra de Munch tem imagens distorcidas, já vi gente chamando até de "quase um borrão" e isso é proposital. Isso dialoga abertamente com o momento que o pintor vinha passando. 

Ele parece esmiuçar o desespero de forma nítida, sem fingir sentimentos. 

E nesse momento me pego refletindo sobre aqueles tempos amargos, sem a comodidade oferecida pela tecnologia (que tanto tem lobotomizado as gerações atuais!), sobre a dificuldade de criar em qualquer esfera, não somente a pintura. Era uma época em que, muitas vezes, artistas eram sinônimo de demoníacos, malditos. Portanto, qualquer obra artística, mais do que a ótica da beleza, do entretenimento, do gerar prazer aos outros, era preciso ser enxergada como um ato de sobrevivência. 

E como sobreviver hoje em dia após anos e anos de artistas fundamentais como Munch, quando tudo parece tão vazio, tão raso de significado, tão fácil para uma minoria elitista cada vez mais covarde e blasé? 

A meu ver, Munch elevou tanto o padrão do seu tempo que acabou por nos tornar acomodados em excesso por medo de tentar atingi-lo ou entendê-lo. E isso é muito ruim. Entretanto, ele faz algo também tão pessoal, tão acima da média, que me parece quase obrigatório estudar a vida e a obra de homens fora de série como ele. 

Para isso servem (ou deveriam servir, pelo menos) as artes. O problema é a falta de curiosidade do mundo contemporâneo, cada vez mais apegado ao óbvio, ao mais do mesmo. E não é à toa que a tela está gritando até hoje! 

P.S atrasado: mais de duas semanas depois de escrever este artigo leio numa matéria do Estado de São Paulo que pesquisadores tentam explicar para os fãs de artes plásticas porque O grito está desbotando, perdendo suas cores originais. E me pego pensando: não será isso proposital numa época em que tudo parece ter perdido completamente o seu sentido original? Talvez seu autor esteja cansado de gritar em vão e prefira desaparecer. Ou talvez seja apenas eu, este projeto de autor, vendo demais e enlouquecendo novamente. 

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