quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Fahrenheit Rondônia


Eu nem liguei o notebook direito e já estou com cara de "putz! mais essa ainda!". Até agora tentando entender a notícia que chamou a atenção do país nessa última semana...

Falo, é claro, dos mais de 40 livros da nossa literatura - alguns deles clássicos, inclusive - censurados pelo Secretaria de Educação do Estado de Rondônia. Só para ter uma ligeira ideia a que nível chegou o disparate, na observação seguinte a lista eles mandam recolher todos os livros do escritor Rubem Alves (e o Rubem Fonseca, autor do magistral Agosto, sofreu praticamente o mesmo boicote). 

Entre as pérolas censuradas duas obras-primas inegáveis de nossa lavra: Macunaíma, de Mário de Andrade e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (não, não, é isso mesmo que você leu! Machado, fundador da Academia Brasileira de Letras, também está na lista). Mas é claro que também sobrou para o eterno dramaturgo Nelson Rodrigues (que estava certo quando dizia, no passado, que vivíamos "a revolução dos idiotas"), Carlos Heitor Cony, Caio Fernando Abreu - autor abertamente homossexual - e o poeta de Poema sujo, Ferreira Gular. 

O clima que se instaurou nas redes sociais em resposta à lista foi de lembrança a um outro clássico, este da literatura mundial: o exuberante e atualíssimo Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (recomendo também aos leitores que conheçam a adaptação cinematográfica feita pelo mestre da Nouvelle Vague, François Truffaut). Na obra em questão livros são incinerados por bombeiros num visão extremista do mundo e que remete, guardadas as devidas proporções, ao terceiro reich nazista. 

Porém, o que mais mexeu com a minha cabeça diante de tudo isso, de todo esse retrocesso disfarçado de democracia em que vivemos nos últimos anos, é uma pergunta que volta e meia toma meus pensamentos e também meus escritos na internet: até quando os livros serão tratados como inimigos nesse país Peter Pan que se recusa a amadurecer?

Os livros entraram na minha vida bem cedo (eu já lia com 9 anos e me orgulho muito disso!) e me fizeram repensar o mundo e a sociedade como nós a conhecemos. E é com enorme tristeza que vejo eles serem tratados como bandidos ou influenciadores do mal por uma grande parcela da população. Aqui mesmo, perto de casa, há um indivíduo, um desses bebuns notórios que adoram se vender como filósofos de botequim, que vende para seus amigos de copo a seguinte premissa: "livros são perda de tempo; passaram a vida ensinando mentiras à humanidade" (a frase segue em aspas, pois são as exatas palavras que ele sempre utiliza). 

Tempos atrás escrevi um texto no facebook em que abria o primeiro parágrafo dizendo "vivemos tempos de Oriente Médio...". Honestamente... Acho que estamos piores do que o Oriente Médio. Digo isso porque sempre considerei aquele lugar uma terra de fanáticos, de pessoas cegas, deslumbradas com mitos religiosos que, na prática, raramente funcionam. E houve um tempo em que acreditei que jamais passaríamos por isso. Estava redondamente enganado!

Vivemos uma nova Era Medieval no que diz respeito à respeito. Não se pode mais pensar diferente, não se pode mais ler algo que ofenda aos outros. Precisamos se cópias xerográficas uns dos outros. Do contrário, somos inimigos. E os livros, coitados deles!, precisam pagar de Cristo nesta situação que só favorece aos ignorantes, aos "cidadãos de bem", com arma no coldre é claro!

E desse Fahrenheit Rondônia nascerá uma nova civilização (dizem eles), mas antenada com aquilo que é correto, que é ético, que é humano. 

E eu me pergunto ao fim dessa rápida narrativa: o que há de humano numa sociedade que tolhe a própria sociedade do direito de ler o que quiser, onde quiser e quando quiser? E qual será o próximo passo? Fechar cinemas, teatros, praias? Excluir qualquer possibilidade de lazer? 

Os demagogos e hipócritas de sempre defenderão. Dirão: "foi apenas em Rondônia". Mas é justamente assim que começa. A tragédia por aqui nunca vem de uma vez só, explodindo tudo e todos. É sempre a conta gotas. E só nos resta, agonizantes, esperarmos as cenas do próximo capítulo (que pode ser amanhã mesmo, hein! Não cochila, não!). 

Obs: no Brasil, quando algo é proibido, boicotado, censurado, normalmente aguça a curiosidade do povo. Esse é, portanto, um bom momento para conhecermos esses ilustres autores. Imprima a lista e os procure nas livrarias perto de sua casa. Acreditem: vocês não vão se arrepender.   


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