quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O filho do trapeiro


Acho que é a primeira vez, desde que comecei essa série de epitáfios sobre celebridades e artistas que marcaram profundamente a minha formação cultural, que eu vivia a expectativa de escrever o artigo. Explico-me: o homenageado em questão já se encontrava há algum tempo debilitado, não andava mais e vivia mais por sua força de vontade e heroísmo. E acabou por se tornar uma lenda também por conta disso! 

Falo especificamente do ator, escritor e produtor Kirk Douglas, que faleceu na noite de ontem (5/fev), aos 103 anos. E não é todo dia que se fala de um artista que viveu mais de um século!

Para muitos dessa geração comic books e graphic novels que invadiram as telas de cinema nos últimos anos ele talvez seja reconhecido apenas como o pai do ator Michael Douglas. Já para este que escreve estas mal traçadas linhas ele foi bem mais do que isso!

É preciso, entretanto, deixar claro uma coisa: não pertenço à geração que viu Kirk Douglas no cinema como gostaria. Mas aprendi a admirá-lo com uma enorme facilidade por causa de meu pai, que o considerava "um dos maiores gênios que hollywood já vira até então". 

Issur Danielovitch Demsky, filho de um trapeiro que fugiu da Rússia (aliás, o título do artigo remete ao título de sua autobiografia, publicada aqui no Brasil nos anos 90, e que eu devorei em menos de cinco dias), comeu o pão que o diabo amassou para chegar ao estrelato. E nunca escondeu dos seus fãs, muito menos da imprensa, que a raiva foi o fio condutor necessário para que ele realizasse tal sonho.  

Durante toda a sua carreira ficou conhecido pelos personagens durões, por seu "vício em sexo" (por sinal, o filho Michael, também herdou um pouco disso) e por sua eterna perseguição à injustiça que pairava nos estúdios no auge do cinema americano. Foi ele que comprou a briga do roteirista Dalton Trumbo, autor perseguido pelo macarthismo, ao decidir produzir Spartacus

Ele é mais conhecido aqui no Brasil por sua interpretação no filme de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Leon Uris. Todavia, foi um artista mais do que versátil e sua filmografia está repleta de obras-primas. A primeira delas, e com um destaque pessoal meu, é A montanha dos 7 abutres, de Billy Wilder (1951), um épico jornalístico que até hoje me deixa de cabelo em pé acerca da impunidade e do mau caratismo que rodeia a imprensa desde que o mundo é mundo. Contudo, é impossível falar de Kirk sem citar também Sede de viver, de Vincente Minnelli (1956), onde interpreta o pintor Van Gogh de forma magistral e do drama de guerra Glória feita de sangue, também de Kubrick (1957). 

Mas a verdade é que eu estou me adiantando porque conheci o seu trabalho à primeira vista por conta de produções menores, de pouca repercussão, como A fúria, de Brian de Palma (1978), no qual interpretava o pai de um paranormal, a comédia escrachada Cactus Jack - o vilão (1979), de Hal Needham, em que divide os holofotes com o astro dos filmes de ação Arnold Schwarzenegger em início de carreira e a também comédia que satirizava a máfia Oscar - minha filha quer casar, de John Landis (1991). E aqui ele mostra ser dono do espetáculo em apenas uma cena, como pai agonizante do mafioso interpretado por Sylvester Stallone. 

E como eu sei de antemão que vai ter gente reclamando que eu dei poucas sugestões, fica aqui de lambuja mais um top 5 para cinéfilos mais fanáticos (como eu):

Chaga de fogo, de William Wyler (1951)
20.000 léguas submarinas, de Richard Fleischer (1954)
Vikings, os conquistadores, de Richard Fleischer (1958)
Sete dias de maio, de John Frankenheimer (1964)
O Nimitz volta ao inferno, de Don Taylor (1980)

Depois do derrame sofrido Kirk teve de tirar o pé do acelerador, mas ainda encontrou uma sobrevida artística como autor de romances. Dois deles, inclusive, renderam boas críticas: Dança com o diabo (1990), que foi publicado por aqui e The gift (1992). Mas não havia a essa altura mais com o que se preocupar, pois seu lugar no panteão dos grandes artistas americanos já estava assegurado. 

Se faltou algo à Kirk Douglas? Acredito que um Oscar por atuação ao invés daquele "pelo conjunto da carreira". Mas sabem como é o Oscar... Só quem acredita mesmo na veracidade daquilo são os adoradores do tapete vermelho e das grifes que volta e meia aparecem por ali. E este nunca foi o meu caso!

Fico imaginando o meu pai, se ainda vivo, dizendo: "É... Hollywood acabou mesmo!". Não tem mais Paul Newman, Steve McQueen, James Stewart, Henry Fonda, Anthony Quinn, em suma, nenhum dos atores que ele curtia. E agora se foi também Kirk Douglas. 

É... Vai deixar saudades. Principalmente pra quem é fã (como eu) do verdadeiro cinema. 

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