sábado, 8 de fevereiro de 2020

Marionete de si mesmo


Eu me lembro, quando estava na casa dos meus 30 anos, de ouvir pela primeira vez sobre os escândalos que aconteciam nos bastidores dos programas infantis que eu assistia no fim dos anos 80 e início dos 90. Via declarações do tipo "a Xuxa belisca os seus baixinhos" até "crianças de cor são boicotadas nas gravações". E também me lembro das práticas ilícitas e sujas envolvendo grupos musicais compostos exclusivamente por crianças, como Trem da Alegria (vi há pouco tempo, inclusive, uma entrevista desabafo com a cantora Patricia Marx metendo a boca no trombone sobre aquela época). E me recordo que nem a Disney e o seu famigerado Clube do Mickey escaparam dos comentários maliciosos. Só para vocês terem uma ideia do nível que foi a coisa, procurem na internet pelo depoimento do ator Corey Feldman - de filmes como Os garotos perdidos e Os Goonies - a respeito dos assédios que sofreu em hollywood ainda criança. 

Por que decidi escrever esse primeiro parágrafo tão extenso no começo desta crítica? Porque me senti revivendo tudo isso, todo esse sentimento, quando acabei de assistir esta semana nos cinemas o longa Um lindo dia na vizinhança, de Marielle Heller. 

O filme de Heller aborda a amarga história do jornalista investigativo da revista Esquire Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um homem que empurra a vida com a barriga por reviver constantemente a relação traumática que tem com o pai, Jerry (Chris Cooper), a quem culpa por deixar ele e sua irmã sozinhos no momento mais difícil de suas vidas. E sua melancolia o persegue por todos os setores de sua vida: no casamento, a esposa Andrea (Susan Kelechi Watson) já não sabe mais o que fazer para trazê-lo de volta à vida. E no trabalho, ele se tornou a pessoa difícil da redação, a persona non grata a quem ninguém quer dar entrevista.

Quando sua chefe na redação o delega a missão de entrevistar o maior ícone dos programas infantis de toda a América, o lendário Fred Rogers (Tom Hanks, como há muito tempo não via nos cinemas), ele pensa tratar-se de um trote, pois tal personagem não se encaixa no perfil do tipo de artista e celebridade com quem ele costuma trabalhar. 

E Rogers é realmente o seu exato oposto: um homem extremamente positivo, que acredita na esperança e na recuperação de pessoas frágeis ou massacradas pelos deslizes da vida. Um homem que vê a dor, o sofrimento e a morte como ciclos da nossa existência e não como razões para simplesmente desistirmos. E isso de alguma maneira incomoda Lloyd. 

Mais do que isso: Lloyd acredita que por ter vivido uma infância tão traumática não é capaz de ver a humanidade com outro olhar que não seja negativo. Ele é praticamente um marionete de si mesmo. 

Vocês devem estar se perguntando: como assim? A pessoa real, o verdadeiro Lloyd Vogel, aquele que deveria seguir em frente, superar suas adversidades, saber perdoar o próximo, está escondido por trás de um personagem que ele próprio criou, amargo, sempre apontando os defeitos dos outros, sempre fugindo da responsabilidade de sentar e colocar os pingos nos is. E por isso, na sua visão deturpada de mundo, ele acredita piamente na impossibilidade de Fred Rogers ser um homem sem defeitos. Ele precisa encontrar algum fantasma escondido no armário que assombre a vida desse homem comum, que ganhou a fama de herói americano. 

Ao final da projeção, vejo algumas pessoas intrigadas, talvez pensando se tudo aquilo era real de fato ou apenas mais uma versão bonitinha para agradar aos fãs de um ícone da televisão. E me pego pensando no quanto, muitas vezes, procuramos o inimigo no lugar errado só para satisfazer nosso próprio ego e nossa eterna mania de rotular os outros. 

Com a idolatria ao que chamamos de globalização e esse século que mal começou e já está dando o que falar (de pior) em todos os sentidos, percebo o quanto nos tornamos uma sociedade stalker, que gosta de perseguir os outros, ver o pior nos demais, às vezes como forma de exaltar a si própria. E tudo isso é muito triste. 

Algumas pessoas que escrevem sobre cinema na internet rotularam Um lindo dia na vizinhança de "cansativo" e "decepcionante". E eu discordo em gênero, número e grau. O filme de Marielle Heller me fez pensar no quanto temos dificuldade de amadurecer, de olhar para frente com outros olhos, de virar a página a respeito do que outras pessoas nos fizeram (e nos magoou tanto). Ninguém nunca nos prometeu que a vida seria fácil e pelo andar da carruagem, prevejo ainda mais relutância e desafios no futuro. E como sobreviver a isso sem levantar a cabeça e recomeçar do zero? Não sei vocês, mas parece-me à primeira vista impossível!

Ou em outras palavras (para quem prefere uma opinião mais curta do que a minha reflexão do parágrafo anterior): Um lindo dia na vizinhança é o filme mais humano - no sentido de investigador - que eu vi nessa temporada de prêmios. E acreditem: isso não é pouca coisa, não!

Sem comentários:

Enviar um comentário