segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Intoxicados ao extremo


Neguem o quanto quiser os moralistas de plantão, mas a cruel verdade é que nos tornamos uma sociedade intoxicada. Por absolutamente tudo. Buscamos na realidade enfadonha do dia-a-dia razões para acreditar que o mundo pode ser perfeito, acima de qualquer suspeita. E há até quem viva de prometer isso aos outros à cifras milionárias (e como vive bem essa gente que engana os outros!). Nos acostumamos a fingir que não há razões para acreditar em derrotas, em perda de tempo, que tudo pode ser lindo, irretocável, para sempre. E mesmo os depressivos escondem de si mesmo e dos outros a triste realidade que são suas vidas miseráveis, pela metade, mesquinhando afetos. 

E após terminar de assistir o fantástico Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Aster, só posso agradecer pelo fato de não ser o único disposto a falar sobre isso e sobre como o século XXI vem transformando seres humanos em máquinas insensíveis. 

A história de Dani (Florence Pugh, fantástica) é sintomática para entendermos o que a sociedade se tornou nas últimas décadas. Ela chegou naquele ponto da vida em que nada mais parece fazer sentido. Seu relacionamento amoroso chegou àquele ponto da estrada em que é melhor sair do carro e refazer o trajeto (mas ela adia a decisão o máximo que pode!), mesmo seu convívio com os pais é delicado e ela decidiu se afastar, morar sozinha. Contudo, quando seus genitores falecem num incêndio mórbido, toda sua fortaleza interior rui e ela sente dentro de si que o pior ainda está por vir. 

Diante de um quadro tão funesto, ela vê na possibilidade de viajar com o namorado e seus colegas de faculdade para uma comunidade religiosa chamada Haarga, um pequeno vilarejo no interior da Suécia, uma espécie de fuga. Mais do que isso: um motivo para recomeçar longe de tudo que até então lhe fazia mal. 

O problema, como todas as pessoas que buscam um recomeço, uma vida linda, um emprego dos sonhos, etc, é a eterna mania de idealizarmos o lugar para onde vamos. E quando Dani se depara com as diretrizes e o estilo de vida da comunidade, ela percebe a duras penas que nada - realmente nada - vem fácil na vida. 

E esse é exatamente o grande legado deixado pelo longa: Aster realiza uma interessante alegoria sobre a eterna busca humana por aquilo que, na maioria das vezes, só existe no papel. Pois na prática as regras do jogo são sempre outras. 

Venho percebendo aqui no Brasil de uns dez anos para cá o crescimento de uma indústria do positivismo extremo. As matérias jornalísticas volta e meia chamam a atual sociedade de geração cristal e, honestamente, eles não estão errados. Vivemos em meio à uma humanidade que esconde sofrimentos, varre desavenças e derrotas para debaixo do tapete, para fingir que elas não existem. No entanto, essas mesmas pessoas se esquecem que tudo isso cobrará seu preço mais a frente. 

Os colegas de Christian (Jack Reynor), namorado de Dani, que buscam realizar uma tese sobre a comunidade, também não entendem que a vida não se resume à obtenção de seus sonhos e a realização de seus projetos. Eles simplesmente bloqueiam de suas mentes, de sua torta realidade, o fato de a existência exigir deles uma contrapartida.

Em outras palavras: queremos dos outros, mas não queremos que os outros queiram nada da gente. A eterna mania de nos olharmos como superiores em relação à nossa própria espécie. 

O diretor disse durante a realização do projeto ter alterado o rumo da história por conta do término amargo de um relacionamento amoroso. E a meu ver, saiu engrandecido dessa história toda. Vejo em seu filme sinais claros de amadurecimento (principalmente em comparação ao seu longa anterior, Hereditário, que não me causou grandes impressões na época em que foi lançado) e também de uma pessoa que percebeu, como eu, que a sociedade vem arruinando sua própria história por acreditar num mundo ilusório onde tudo é motivo de festa, vitória e celebração. 

Ao final do filme (e o último take é extraordinário, na medida em que reflete exatamente esse lado egoísta da sociedade, que vê o outro como seu inferior, como alguém que deve "pagar a qualquer custo" por algo que lhe tenha feito) vejo estupefato a consequência dessa intoxicação extrema pela qual estamos passando nas últimas décadas. 

Muito se fala em cura no século XXI. Entretanto, me pergunto quem será o curandeiro nesse mundo onde os próprios doentes escondem suas enfermidades. 

P.S (na verdade, uma pequena sugestão): prestem atenção, fãs de terror, em como as cenas mais horrendas, mais incômodas de todo o filme, são apresentadas ao público com o dia claro, ao contrário do que se vê normalmente no gênero. 

P.S 2: se você já viu A vila, de M. Night Shyamalan, e gostou não vai querer perder esse filme por nada no mundo. 

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