sábado, 15 de fevereiro de 2020

O efeito bumerangue


Vocês por acaso já viram garotos brincando com bumerangues? Pois eu já. No final dos anos 1990 eu costumava frequentar, aos domingos, um terreno que existe atrás da Cinemateca do MAM, no Aterro do Flamengo. Ali encontrei muita gente jogando frescobol, casais namorando, os fanáticos por aeromodelismo e a garotada que curtia bumerangues. E havia um garoto antipático de nome Rogério que se achava um grande mestre na arte de atirar bumerangues. Mais: ele volta e meia jogava na cara dos outros garotos que seus bumerangues eram importados e, por isso, mais difíceis de jogar. 

Certa ocasião ele atirou seu bumerangue com uma força tão desmedida que quando o objeto regressou na sua direção atingiu em cheio o seu rosto. Várias pessoas ao redor correram para socorrê-lo, chegaram a levá-lo para o pronto-socorro e alguns dos garotos de quem ele debochou chegaram a sussurrar: "bem feito! assim ele para de contar vantagem!". Só tornei a rever Rogério mais uma vez, meses depois, e ele ficou com uma cicatriz feia no supercílio. 

Por que estou contando tudo isso? Porque esta semana enfim consegui assistir Joias brutas, dos irmãos Benny e Josh Safdie, e me peguei refletindo sobre a mesma situação que envolveu o jovem Rogério 20 anos atrás: a daquelas pessoas que querem levar suas vidas até as últimas consequências, sem respeitar ninguém e se esquecem do ciclo natural da vida e do quanto ela é capaz de aprontar para nos pôr no nosso devido lugar.

Joias brutas nos traz a história de Howard Ratner (Adam Sandler, naquela que é talvez a melhor interpretação de sua carreira), o estereótipo clássico do oportunista e picareta profissional. Ele usa sua joalheria como mero disfarce de legitimidade para uma vida de mentiras e armações as mais variadas. Contudo, internamente, ele se encontra falido, às vésperas de um divórcio que ele quer evitar a qualquer custo, e mesmo seus familiares não acreditam 100% em seu juízo de valor. Em outras palavras: é um ser humano que caminha a passos largos rumo ao abismo (e nem se dá conta disso). 

E quando ele acredita ver sua maré de azar ficando para trás com a chegada de um diamante etíope raro, a vida lhe prega mais uma peça - mostrando que nem sempre a realidade conspira a nosso favor - e ele se vê envolvido numa roubada de proporções estratosféricas, que envolve inclusive o astro da NBA Kevin Garnett. 

O filme dos irmãos Safdie é um retrato nu e cru, sem rodeios, de nossa sociedade de valores deturpados, onde tudo é sinônimo de apostas, poder, status sociais e patrimônios elevadíssimos. Em suma: deixamos de ser homens e nos tornamos mercadorias sedentas por valor. E esse valor não pode ser baixo. 

E desse misto de atletas profissionais viciados em superstições (a adoração de Garnett pelo diamante bruto é praticamente patológica!), cantores de hip-hop meia boca que se acreditam deuses revolucionários da indústria fonográfica contemporânea e que por conta disso se sentem no direito de pisar em quem for, por qualquer motivo e a eterna entourage de sanguessugas que volta e meia rodeiam aqueles que detém o dinheiro do mundo nasce praticamente um ensaio seco e realíssimo sobre a usura no século XXI. 

Algumas pessoas nos portais de cinema e nas redes sociais ficaram um tanto quanto decepcionadas com a não-indicação de Sandler ao Oscar de melhor ator desse ano, mas cá entre nós, eu acredito que ele não tinha a menor chance, embora sua atuação seja realmente um ponto forte do filme. Se o Eddie Murphy (por Meu nome é Dolemite) e o Taron Egerton (por Rocketman) ficaram de fora, com Sandler não seria diferente. E olha que nem o De Niro (por O irlandês) conseguiu vaga esse ano!

Outra coisa: talvez eu tenha enxergado demais ou não tenha entendido o suficiente, mas achei que a interpretação de Sandler me lembrou um pouco o Al Pacino dos últimos anos. Aquele jeito de falar quase um esporro, como se estivesse brigando com todo mundo o tempo todo. Na boa... Ficou com cara de coisa copiada, que ele pegou de empréstimo. Mas como eu disse lá em cima: talvez eu tenha visto demais. 

No final o que temos de concreto é mais um bom projeto da ótima produtora A24, que vem se destacando nos últimos anos com produções fora da chamada "zona de conforto" (e para quem está por fora e não ligou os pontos ainda, a produtora é responsável por longas como O farol, de Robert Eggers; Midsommar: o mal não espera a noite, de Ari Laster; Anos 90, de Jonah Hill; Gloria Bell, de Sebastián Lelio, entre outras pérolas). 

P.S: seja Rogério ou Howard, o mundo anda cheio de babacas se achando indestrutíveis e acima de qualquer deslize ou derrota. O problema é que eles sempre se esquecem que o mundo tem suas próprias regras e nem sempre está apto a atender nossas expectativas ou sonhos.  

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